É melhor adiar
Não nego que durante a fase mais aguda da pandemia aqui em Paris, vez ou outra eu pensava nas vantagens de morrer agora. De todas elas, a mais óbvia era a de poder morrer gordo, sem nunca mais enfrentar preleções sobre os benefícios da esbeltez Pode ter coisa mais supliciante do que ouvir um sermão familiar sobre a cirurgia bariátrica nas noites do domingo, bem na hora da música do “Fantástico’, quando meio mundo já pensa na morte? Não é que nunca tenha feito dieta. Fiz uma, em 1983, com um afamado endocrinologista paulistano. Dr. Gildo prescreveu um remédio na farmácia de manipulação. Dali em diante, por duas semanas, alternava irritação com melancolia. Quando vi que tinham me separado uma ala da mesa, e que estava encurralado numa ponta onde só tinha alface, queijo branco e torrada, apartado da carne de sol com macaxeira, tive um acesso de fúria. Nunca mais fiz uma dieta desde então.
A segunda vantagem seria a de não mais ter que falar com um contador, a categoria mais cansativa que existe sobre a Terra. Não que sejam más pessoas. Para me aturar nessas horas, só sendo almas complacentes. Lembro de Valdir, o escudeiro de minhas pequenas finanças quando deixei as funções corporativas maiores. “Por que você me pergunta isso, rapaz? Faça de conta que eu sou seu pai ou seu filho. Você proporia uma coisa ruim a eles? Pois faça o mesmo para mim e estamos conversados.
Lucro presumido? Ótimo, por que não? Vamos agora falar do Santos. Isso me cansa.” A terceira enorme vantagem seria me ver livre dessa guerra de slogans que grassa no Brasil por conta da política. Não me conformo com a direita de costumes e com a esquerda emasculada, que não sonha mais com a felicidade da humanidade, senão com a satisfação de pequenos caprichos de “clubber”. Ambas perderam suas bandeiras.
Mas, é claro, nem tudo é tão simples. Domingo passado, peguei uma mesa num café da Bastilha, bem diante de uma das saídas do metrô. Em dado momento, fiquei vendo a luz do sol que cavava espaço entre as nuvens e varava a copa das árvores cuja folhagem começa a amarelar. As alterações de luz eram muito rápidas. Em 10 minutos, tirei 20 fotografias da mesma paisagem. Nenhuma saiu igual à anterior. Então pensei que perder aquela profusão de cores por conta da Covid seria mesmo uma pena. E com ela, o croissant matinal, a pesquisa nos caixotes dos bouquinistes do Sena, as conversas ao acaso no Café de Flore e o desfile das tribos que sonham com a normalização da vida, e com a chegada do outono. Então apertei bem a máscara e sumi na direção do boulevard Henri IV. Decididamente, precisava viver.
Fernando Dourado Filho, é autor de “Escuta Israel” (Ed. Glaciar, Lisboa, 2020)