Jornal do Commercio

É melhor adiar

- FERNANDO DOURADO douradofer­nando372@gmail.com

Não nego que durante a fase mais aguda da pandemia aqui em Paris, vez ou outra eu pensava nas vantagens de morrer agora. De todas elas, a mais óbvia era a de poder morrer gordo, sem nunca mais enfrentar preleções sobre os benefícios da esbeltez Pode ter coisa mais supliciant­e do que ouvir um sermão familiar sobre a cirurgia bariátrica nas noites do domingo, bem na hora da música do “Fantástico’, quando meio mundo já pensa na morte? Não é que nunca tenha feito dieta. Fiz uma, em 1983, com um afamado endocrinol­ogista paulistano. Dr. Gildo prescreveu um remédio na farmácia de manipulaçã­o. Dali em diante, por duas semanas, alternava irritação com melancolia. Quando vi que tinham me separado uma ala da mesa, e que estava encurralad­o numa ponta onde só tinha alface, queijo branco e torrada, apartado da carne de sol com macaxeira, tive um acesso de fúria. Nunca mais fiz uma dieta desde então.

A segunda vantagem seria a de não mais ter que falar com um contador, a categoria mais cansativa que existe sobre a Terra. Não que sejam más pessoas. Para me aturar nessas horas, só sendo almas complacent­es. Lembro de Valdir, o escudeiro de minhas pequenas finanças quando deixei as funções corporativ­as maiores. “Por que você me pergunta isso, rapaz? Faça de conta que eu sou seu pai ou seu filho. Você proporia uma coisa ruim a eles? Pois faça o mesmo para mim e estamos conversado­s.

Lucro presumido? Ótimo, por que não? Vamos agora falar do Santos. Isso me cansa.” A terceira enorme vantagem seria me ver livre dessa guerra de slogans que grassa no Brasil por conta da política. Não me conformo com a direita de costumes e com a esquerda emasculada, que não sonha mais com a felicidade da humanidade, senão com a satisfação de pequenos caprichos de “clubber”. Ambas perderam suas bandeiras.

Mas, é claro, nem tudo é tão simples. Domingo passado, peguei uma mesa num café da Bastilha, bem diante de uma das saídas do metrô. Em dado momento, fiquei vendo a luz do sol que cavava espaço entre as nuvens e varava a copa das árvores cuja folhagem começa a amarelar. As alterações de luz eram muito rápidas. Em 10 minutos, tirei 20 fotografia­s da mesma paisagem. Nenhuma saiu igual à anterior. Então pensei que perder aquela profusão de cores por conta da Covid seria mesmo uma pena. E com ela, o croissant matinal, a pesquisa nos caixotes dos bouquinist­es do Sena, as conversas ao acaso no Café de Flore e o desfile das tribos que sonham com a normalizaç­ão da vida, e com a chegada do outono. Então apertei bem a máscara e sumi na direção do boulevard Henri IV. Decididame­nte, precisava viver.

Fernando Dourado Filho, é autor de “Escuta Israel” (Ed. Glaciar, Lisboa, 2020)

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