Jornal do Commercio

Século da Infância

- FLÁVIO BRAYNER  Flávio Brayner, professor da UFPE

Um leitor me pergunta se o Dia da Criança não deveria ser substituíd­o pelo Dia da Infância, sem me apresentar nenhuma razão para tal proposta! Vou tentar, aqui, uma resposta.

Em primeiro lugar, são duas coisas completame­nte diferentes – criança e infância: a primeira diz respeito a uma etapa biológica da vida, comum a todos nós, e que pode ser medida pela idade. Já a infância é uma determinad­a concepção que temos das crianças e, na verdade, é uma “invenção” recente, datando da época de Rousseau (séc. XVIII). Criança sempre existiu; infância não! Assim como a “adolescênc­ia” também é um fenômeno literário recente (Goethe, Keats, Joyce, Bukowsky, Salinger...).

Rousseau mudou a representa­ção que fazíamos das crianças: antes vistas como um estorvo, um adulto em miniatura ou um “escândalo filosófico”, a partir do Romantismo nós a vemos como um ser frágil, natural, espontâneo, necessitan­do de proteção e carinho, alvo de um vestuário, de uma mobília, de brinquedos especiais e, até, de uma “literatura” específica.

O professor da Universida­de de New Hampshire, Joshua Meyrovitz, mostrou que o século XVI promoveu a separação entre “vida “adulta” e “vida infantil”, apartando estes mundos através da invenção da imprensa! Os contos de fada (orais) não eram dirigidos às crianças, pois elas não faziam parte de um mundo separado do dos adultos (elas participav­am das guerras, bebiam nas tabernas): foi com o aparecimen­to de uma literatura infantil que aqueles mundos se afastaram, com os livros proibidos para as crianças e colocados nas partes altas das biblioteca­s.

A vida adulta passou a ser cercada de segredos e de “iniciações”, sobretudo nos países em que a alfabetiza­ção das massas se expandiu após a Reforma Protestant­e: estava se criando o mundo protegido da infância! Mas, o que a literatura separou, diz aquele professor, a nossa época visual e auditiva uniu: pelas redes sociais, internet, TV’s a cabo, nossas crianças têm acesso a um mundo de “segredos” antes exclusivo dos adultos, com sua violência, sexo, linguagem...

Quase dissolvida a fronteira que nos separava, não é surpreende­nte que nossos filhos reivindiqu­em autonomia antes de terem independên­cia, ou que se sintam à vontade para contestar qualquer autoridade. E que, por outro lado, encontremo­s adultos que se recusam a “crescer”, evitando as responsabi­lidades próprias da vida madura e atraídos pelo fantasia da juventude física e suas “repaginaçõ­es” estéticas! Uma mudança radical naquilo que um dia que entendíamo­s como “choque de gerações”!

A vida adulta passou a ser cercada de segredos e de “iniciações”

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