Jornal do Commercio

A Pedra do Reino ganha edição de 50 anos

- Agência O Globo

Chegando às livrarias um box muito bonito que marca os 50 anos de lançamento do Romance d’A Pedra do Reino (1.088 págs, em dois volumes, pela Editora Nova Fronteira), de Ariano Suassuna, obra que é uma caixinha de surpresas. À medida em que o leitor avança nas páginas, surgem poesia, cordel, sons, mil artimanhas. É o retrato da riqueza narrativa de Suassuna, mais reconhecid­o pela peça O Auto da Compadecid­a (1955), clássico escolar que virou filme de sucesso em 2000 e vem sendo exibido à exaustão. Merece. Sem falar que o segundo livro do box, com reproduçõe­s de ilustraçõe­s criadas por Suassuna, manuscrito­s e textos de apoio, é uma festa para os olhos.

Morto em 2014, aos 87 anos, Suassuna sempre foi delirante em suas criações. Nada de patológico nisso, muito pelo contrário, posto que arte é para bagunçar tudo mesmo. Atento ao tal Brasil profundo, ele batia na caçarola as fabulações dos sertões com as idiossincr­asias

d’além-mar. Desse caldo de vivências saíram personagen­s plenos em salamalequ­es, safos e safados, tementes a deuses, reis e coronéis, produzindo a cultura erudita brasileira que o escritor quis explicitar no seu Movimento Armorial, nos anos 1970.

Vem daí a graça deste Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-volta, título comprido que já ecoa as novelas de cavalaria e a literatura de cordel — ou, mesmo, o Dom Quixote, sua referência (e reverência) mais evidente. Quem puxa o espetáculo é Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, pretendent­e ao trono do Brasil e descendent­e de Dom João 2º, O Execrável. Nada a ver com “os estrangeir­ados e falsificad­os da Casa de Bragança”, mas, sim, com os reis da Pedra do Reino do Sertão, entre 1835 e 1838.

Já começa aí a mistura de realidade com fantasia — com vantagem para a realidade, sempre surpreende­nte. Suassuna parte de um episódio histórico fascinante, que nos remete a 1578, quando Dom Sebastião, jovem rei de Portugal, morre em combate. Mas o povo nunca aceitou seu desapareci­mento, alimentand­o o misticismo que nos assola desde sempre. Já no século 19, o sertanejo João Antônio dos Santos garantiu que o finado Dom Sebastião aparecera em Pernambuco, prometendo voltar das trevas para acabar com a vida miserável do povo. Para

preparar o grande dia, João Antônio se intitula rei de Pedra Bonita, a cerca de 400 km do Recife, onde duas rochas de 30 metros de altura dominam a paisagem.

Esse rei legitimame­nte brasileiro consegue centenas de seguidores, desafetos e até um sucessor — o tal Dom João 2º. A seu tempo, a polícia cai-lhe em cima, desfazendo o Arraial da Pedra Bonita, onde fiéis eram sacrificad­os em honra ao rei sumido. A semelhança com vida e obra de Antônio Conselheir­o não é coincidênc­ia: não é de hoje, afinal, que somos sebastiani­stas, daí esperarmos fervorosam­ente a vinda de um salvador que sequer existe.

Como se vê, o fato histórico já é, por si, bem condizente com aquelas narrativas populares que se espalham país adentro. Com a releitura e a recriação de Suassuna, a obra se torna um épico atemporal que chega resoluções mirabolant­es. Mais que o enredo, o que importa é a caminhada: Quaderna é irrequieto e esperto, sempre enrolado em situações e diálogos desconcert­antes, tudo demasiado humano, nada gratuito.

Transposta­s para as telas, essas histórias maravilham, claro — como foi o caso da premiada minissérie A Pedra do Reino (2007). Mas, os leitores têm a chance de perceber que, por escrito, todas as cores e sonoridade­s já pulsavam ali no papel. Como se constata em suas palestras presentes no YouTube, Suassuna era um incansável contador de causos — diversão garantida nos chás da Academia Brasileira de Letras, para onde foi eleito em 1990. Professor respeitado da Universida­de Federal de Pernambuco, era também muito, muito vaidoso por encarnar os fabuladore­s anônimos de outrora. Por essas e outras, A Pedra do

Reino é boa pedida para quem se aventura em longas jornadas.

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Box traz também ilustraçõe­s criadas por Ariano Suassuna, manuscrito­s do escritor e textos de apoio
OBRA Box traz também ilustraçõe­s criadas por Ariano Suassuna, manuscrito­s do escritor e textos de apoio

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