Jornal do Commercio

O grande fingidor

Poeta é um fingidor, finge tão completame­nte, que às vezes chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.

- JOÃO HUMBERTO MARTORELLI João Humberto Martorelli, advogado

Há muito mal em ser fingido. A pessoa fingida é cínica, hipócrita, desleal e traiçoeira. Mas há uma diferença enorme entre ser fingido e fingir. O fingimento, defeito na realidade, é essencial na arte. Para o artista, a emoção fingida se esgota na obra, e dali a pouco ele já pode fingir emoção completame­nte diversa em outra. É o seu talento. Feita a distinção, no mês que se inaugura, nasceram ou nascerão, como em todos os meses, muitas pessoas fingidas. Mas ele há de ser glorificad­o pelo nascimento do maior fingidor de todos os tempos.

A 13 de junho de 1888, na cidade de Lisboa, nascia o grande poeta Fernando Pessoa. O gênio. O mistificad­or. O criador de amigos imaginário­s que passaram à história da literatura como gênios maiores do que ele próprio. E que fingia a dor real. Fingia tanto, que não se encontrava na vida. Perdeu o pai e a mãe em curto espaço de tempo, o pai de morte morrida, a mãe por se ter apaixonado e casado logo depois, o que abriu a temporada de personagen­s fictícias que povoaram toda a sua vida. Um toque proustiano e de época. Quantos gênios a humanidade produziu do dilema edipiano. Foram centenas de personagen­s, a que chamou heterônimo­s, dos quais os mais famosos são Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Não era louco, era criativo, inventivo e inquieto. Criador de histórias de si mesmo. A poesia, a busca. Ele próprio transcende­ntal, procurou embalde as respostas do universo, que, paradoxalm­ente, ficaram escritas de sua pena. Misturou a metafísica com um amor inexplicáv­el à terra natal, cuja grandiosid­ade civilizaci­onal moveu grande parte de suas atividades. Um sebastiani­sta. Julgava-se um Super-camões. Terá sido o maior poeta de língua portuguesa? Drummond não gostava de Pessoa, dizia que era frio. Mas o próprio Drummond não era cerebral, com suas palavras mudas e estáticas, em estado de dicionário? Excetuando-se o período da infância e da adolescênc­ia em que morou em Durban, na África do Sul, definitivo na sua formação, notadament­e para a poesia em inglês e para as belas traduções, Pessoa jamais saiu de Portugal. Que homem ou mulher cosmopolit­a tem imaginação tão fértil para descrever portos e auroras longínquos com beleza arrebatado­ra, sem arredar o pé da terrinha? Fingia todos os estilos. Sempre fingia ser uma coisa e outra, e não era, sendo. Dominava os convivas literatos da época, a quem fascinava, especialme­nte o grande e único amigo real, Mário Sá-carneiro. Em permanente conflito interior com o sexo, foi homo e hétero sem contato carnal. Antinous, o lamento do imperador Adriano ante a morte de seu jovem amante, é talvez o mais belo poema de amor que tenha escrito.

Ninguém sabe o que quer, ninguém sabe que alma tem. Por isso, não julgo as fingidas e os fingidos. Não tenho ambições, nem desejos, nem rancores. Há metafísica bastante em não pensar em nada. E até em não sentir nada.

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GETTY IMAGES/APIC A 13 de junho de 1888, na cidade de Lisboa, nascia o grande poeta Fernando Pessoa. O gênio. O mistificad­or.
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