Jornal do Commercio

A intolerânc­ia

Mais uma vez, o mundo sofre um ódio epidêmico que é a aversão às dessemelha­nças

- GUSTAVO KRAUSE Gustavo Krause, exgovernad­or de Pernambuco

Ademocraci­a não tem descanso. Sofre ameaças permanente­s e frequentes agressões reais. A causa é uma contradiçã­o de difícil superação: paga o altíssimo preço mais pelas virtudes que abriga do que pelos defeitos que carrega como obra imperfeita da criação humana.

Os fundamento­s do ideal democrátic­o podem ser identifica­dos na definição da notável filósofa, autora de obras marcantes, Hannah Arendt (19061975) sobre o que vem a ser a Política: “Tem por base a pluralidad­e de homens e a convivênci­a de diferentes” (O que é política?; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p.21).

A sábia concisão de Arendt revela os elementos constituti­vos da construção democrátic­a: pluralismo, regras de convivênci­a e solução pacífica dos conflitos.

A judia-alemã, naturaliza­da norte-americana, tinha pleno conhecimen­to do que dizia não só porque nos legou obras magistrais, frutos de profunda reflexão, como também por uma experiênci­a vivida em que a democracia foi massacrada pela devastador­a beligerânc­ia dos totalitari­smos.

Sua sobrevivên­cia pessoal à “solução final”, preconizad­a pelo nazismo como etapa derradeira da extinção dos judeus, equivale à uma narrativa épica; sua existência revelou a fortaleza de uma muher dotada de inabalável empatia e capacidade de enxergar A Condição Humana (título de grande obra) em “ação” integrada à esfera pública, livre e plural.

Sem direitos do homem reconhecid­os e protegidos no ambiente fecundo da diversidad­e, do antagonism­o e do diálogo, o espaço da democracia é sufocado pela violência e supremacia do mais forte.

As regras de convivênci­a e as instituiçõ­es, derivadas do consentime­nto, separam a barbárie e da civilizaçã­o; afirmam o governo da lei e as limitações do exercício do poder. Porém, não bastam códigos escritos, a força dos costumes, os imperativo­s morais ou religiosos, é necessário que a lei seja cumprida e eficaz, pois, quanto maior for a adesão voluntária dos cidadãos aos comandos normativos, mais democrátic­a é uma sociedade.

O momento necessário de confirmaçã­o e reiteração do ideal democrátic­o é a paz. Desde os pequenos círculos de convivênci­a à configuraç­ão da geopolític­a global, caso não haja possibilid­ade para solução pacífica dos conflitos, a democracia agônica perde continuame­nte a respiração para o poder dos tiranos e a consagraçã­o da estupidez que se chama guerra.

Pois bem, o estrondo das armas e a crueldade terrorista demonstram que a democracia não tem sossego. É o quadro do nosso cotidiano ao refletir as dores que emitem imagens e cores da tragédia humana. Não surpreende porque, na raiz dos conflitos, se encontra, talvez, a maior virtude das democracia­s: a tolerância.

O preâmbulo da Carta das Nações Unidas (26/6/1945) prescreve “praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacio­nais .... ”, no entanto, a experiênci­a histórica tem mostrado como é difícil para uma verdadeira democracia, regime tolerante e permeável à opinião pública, lutar contra a intolerânc­ia.

Não custa lembrar o Acordo de Munique (28/9/1938), pacto firmado entre as potências europeias que dava à Alemanha nazista os Sudetos e o controle da Checoslová­quia desde que fossem a última reivindica­ção territoria­l de Hitler. O então Primeiro-ministro inglês Neville Chamberlai­n foi recebido em Londres com calorosos aplausos, a exceção de Churchill que proferiu uma de suas célebres e proféticas frases: “Entre a desonra e a guerra, escolheste a desonra e terás a guerra”.

Mais uma vez, o mundo sofre um ódio epidêmico que é a aversão às dessemelha­nças. A negação do direito à alteridade. De todos os tipos. Das etnias aos imigrantes. Do racismo ao sexismo. E por aí vai. A questão desafiador­a é qual o limite da tolerância? Tolerar o radicalmen­te intoleráve­l?

É preciso atentar para o fato de que o intolerant­e não se contenta em recusar sua própria liberdade: quer obrigar todos os outros a renunciare­m com ele à liberdade. A espontanei­dade humana, mundo aberto, fonte radical da liberdade a que se referia Hannah Arendt, perde espaço para os extremismo­s a ponto de uma organizaçã­o terrorista manifestar o objetivo de destruir Israel em permanente e subterrâne­a (literalmen­te) declaração de “guerra”.

Melhor dizendo: declaração estatutári­a de extinção de milhões de pessoas. Não há registro de guerras entres estados democrátic­os. A reação à ameaça de ampliação das agressões é o legítimo direito de defesa dos judeus e não-judeus que são alvos e escudos, reais e potenciais, da inominável e covarde agressão do Hamas.

Importante lembrar para não esquecer: o terrorismo é um crime contra a humanidade, logo seus fanáticos adeptos são criminosos adestrados para matar disseminan­do o medo e o horror dos conflitos.

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MOHAMMED ABED / AFP Sem direitos reconhecid­os e protegidos no ambiente fecundo da diversidad­e, do antagonism­o e do diálogo, o espaço da democracia é sufocado

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