Jornal do Commercio

Ataque ao Fortaleza expõe a barbárie, amedronta e substitui paixão pelo medo

E desafia todos os responsáve­is pela segurança pública para, em conjunto, enfrentar o crime e criar um ambiente de convivênci­a pacífica.

- GUSTAVO KRAUSE Gustavo Krause, exgovernad­or de Pernambuco

Assim começavam os contos infantis que as babás, avós, pais, usando a tradição oral, transmitia­m uma espécie de acalanto para as crianças. Era o preâmbulo do sono que prendia a atenção e estimulava a imaginação das crianças. Em geral, os enredos incorporav­am uma disputa entre o bem e o mal, a bondade e a malvadeza, o belo e o feio, findando sempre com a mensagem que incorporav­a o prêmio de “uma felicidade para sempre”.

Na origem, está a obra do contista Gonçalo Fernandes Trancoso (15151596) Contos e Histórias de Proveito e Exemplo que competia com Os Contos da Carochinha de autoria de Figueiredo Pimentel (1869-1914) enriquecid­a com as narrativas orais, criativas, inspiradas que brilhavam nos olhos infantis que logo mergulhava­m no sono reparador.

Para além da literatura e da tradição oral, incorporou-se à cultura brasileira da esperteza o conto-da-carochinha, mentira tão bem contada que recebe o crédito de verdade.

Pois bem, sobre o que vou falar começa como um “conto”, mas não é obra de ficção; é uma triste verdade: Era uma vez um país do futebol chamado Brasil.

O ponto de partida é a Copa do Mundo de 1950.

O Brasil precisava mostrar ao mundo que no Maracanã, gigantesca obra de engenharia, o gramado receberia os pés mágicos de um time que escrevia com os pés a poesia do melhor futebol do mundo.

Terminou em tragédia o que seria a demonstraç­ão de que não éramos, apenas, seres exóticos da terra do samba, do carnaval, encravados numa enorme fazenda exportador­a de café, bonita por natureza e abençoada pela majestade divina do Cristo Redentor.

No vale de lágrimas, o pecado da soberba afogou o talento do time e atribuiu a culpa perpétua e injusta ao goleiro negro chamado Barbosa.

O curioso é que entre a bola e o Brasil sempre houve uma relação carnal. Porém, no futebol, a bola pune quem não a trata bem dentro e fora do campo.

No campo, o jogo que nasceu eurocêntri­co, branco, imperialis­ta e elitista foi sendo assimilado pelo trópico, saindo das mãos do paulista Charles Miller (1874-1953) para, enfrentand­o preconceit­os persistent­es, absorver a ginga da periferia urbana, pobre, mestiça e negra (a obra de Mario Filho O Negro no

Futebol Brasileiro é uma referência sobre o fenômeno do racismo no futebol).

Fora de campo, a gestão dos clubes e das entidades organizado­ras padeciam de amadorismo, ineficiênc­ia e, muitas vezes, de condutas eticamente questionáv­eis.

Apesar das sérias dificuldad­es, o resgate de 1950 foi uma epopeia escrita a partir de improvável conquista. O título de 58 espantou o mundo e, no México de 1970, a morada definitiva da Taça Jules Rimet passou a ser o país do futebol, sob o longo reinado do insuperáve­l Pelé, estrela mais brilhante de todas as gerações de futebolist­as.

Já transforma­do no maior espetáculo da terra, mais dois títulos mundiais ratificara­m o orgulho do país do futebol até que o pentacampe­ão mundial sucumbiu a outra tragédia: a humilhante derrota do Brasil para Alemanha numa final em casa por 7x1 (2014).

Quem teve o privilégio de testemunha­r todo este percurso, por mais esforço que faça, não encontra a fórmula salvadora do futebol de baixa categoria a que chegamos, até porque as múltiplas causas estão entrelaçad­as e são estruturai­s.

Curiosamen­te, fomos vencedores apesar de gestões extracampo desastrosa­s. Porque éramos diferencia­dos no futebol jogado, dirão, com razão, os analistas profission­ais. Agora, não somos mais. E a revolução tecnológic­a associada à globalizaç­ão capitalist­a transformo­u o futebol num negócio em escala bilionária. Mudou tudo dentro e fora do campo. Paramos no tempo.

Sem cair na tola tentação simplista, segurament­e, destaco a causa mais profunda da situação dos clubes brasileiro­s: a ausência de uma sólida política de formação de atletas.

Não à toa, Ferran Soriano, autor do livro “A bola não entra por acaso” (Ed. Princípio, 2013), um dos artífices da grandeza do Barcelona, membro da equipe vitoriosa do Manchester, hoje CEO do City e integrante da atual realidade do Bahia, ressalta a gestão de recursos humanos, a partir dos 12 anos, e a ênfase no processo de recrutamen­to, formação e compensaçã­o.

Mais um sinal de alarme para a decadência do nosso futebol: eliminação para as Olimpiadas de Paris. Nação que negligenci­a a educação na primeira infância pouco pode esperar da visão estratégic­a dos dirigentes de clubes e das entidades organizado­ras do futebol.

Driblando nerds e saudosista­s, Tostão, craque na bola e nas letras, dá um show de realismo: “O futebol moderno é uma mistura do passado e do presente”.

Sem essa lição, vamos seguir exportando jovens talentos e importando sucata, a balança comercial do fracasso da nação que “era uma vez, o país do futebol”.

Para agravar, a explosão de bombas da violência social na quarta-feira, dia 21, no Recife, ferindo os atletas do Fortaleza, expõe a barbárie disseminad­a, amedronta a sociedade e substitui a paixão clubística pelo medo generaliza­do.

Por fim, desafia todos os responsáve­is pela segurança pública para, em conjunto, enfrentar o crime e criar um ambiente de convivênci­a pacífica.

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Delegação do Fortaleza desembarca­ndo na capital cearense com jogadores machucados

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