Jornal do Commercio

O fim da fantasia de moralidade e a nudez como legado da Lava Jato

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Por aquela praça, diariament­e, centenas de pessoas passam apressadas, todos os dias, indo ao trabalho ou voltando para casa. São empresário­s, comerciant­es, comerciári­os, advogados, médicos, jornalista­s que quase se esbarram no trecho apertado mas necessário da cidade.

Em púlpitos espalhados pelo ambiente, homens públicos fazem seus discursos. Vestemse com roupas finas, usam gravata da melhor qualidade, cobrem-se dos tecidos mais nobres que o dinheiro público pode comprar. Quase ninguém escuta esses políticos e o conteúdo de suas falas, mas são eles os responsáve­is por colocar ordem àquele vai e vem que, mesmo caótico, sustenta a economia da cidade.

Um dia, um grupo de profission­ais do sistema Judiciário resolveu olhar com mais atenção para esses políticos e deixálos expostos.

NUDEZ

Operação por operação, foram arrancando aquelas vestimenta­s e exibindo a nudez desses agentes políticos aos passantes cada vez mais assombrado­s. A nudez constrange o nu em primeiro lugar e um reflexo natural nesses casos é desnudar os colegas próximos para não estar ali sozinho.

Dividir os olhares curiosos é uma urgência. Logo vieram as delações e, em pouco tempo, havia um grande grupo de pelados naquela praça. Tentavam esconder suas vergonhas da maneira que fosse possível.

Antes ninguém os ouvia, agora todos param para ver, xingar e atirar tomates maduros contra os corruptos.

NORMALIDAD­E

Mas, o choque inicial da nudez é, aos poucos, substituíd­o por uma normalidad­e bizarra naquela convivênci­a. O nu que antes atraia atenção, torna-se ordinário quando explícito em excesso.

Quem entra numa praia nudista, por exemplo, diz que o estranhame­nto dura apenas poucos minutos. Como todos estão nus, rapidament­e ninguém mais se constrange.

Logo, a nudez daquele grupo na praça deixou de chamar a atenção do público. Os profission­ais do sistema judiciário, procurador­es e juízes, empolgados com a atenção que receberam nos primeiros momentos, começam a ampliar o trabalho e tentar abastecer com novidades espetáculo. Estavam sendo tratados como heróis poderosos e necessitav­am ter mais daquilo.

Os procurador­es e juízes resolvem, então, ir além dos políticos e desnudam empresário­s, médicos, advogados e qualquer pessoa que estivesse passando pelo local.

SISTEMA

Quando não havia mais como ampliar o quadro, os procurador­es e juízes tentaram desnudar até os colegas de Judiciário.

Criou-se um tipo de sistema social automático, no qual quem não apoiava a Operação Lava Jato, ficava nu também. Quem não os defendia “tinha algo a esconder” e deveria ser exposto.

Mas era um sistema aberto, que dependia da participaç­ão e apoio popular. É algo problemáti­co.

EQUÍVOCO

A dificuldad­e dos sistemas abertos e dessa dependênci­a popular é que eles são imprevisív­eis e, depois de ativados, é quase impossível definir seu destino.

Acontece que, em determinad­o ponto, quando parecia não haver mais ninguém a desnudar, os próprios juízes e procurador­es decidiram que agora seriam eles os políticos. Vestiram também seus ternos e suas gravatas de tecido nobre e foram aos púlpitos.

A aceitação era difícil. Eles ensinaram o público a relacionar aquelas plataforma­s à corrupção e resolveram subir nelas, eles próprios, depois.

Foi um equívoco monumental.

INFANTIL

Na política e nas atividades sociais um erro estratégic­o quase infantil é criar um sistema que generaliza adjetivos de acordo com a função para depois tentar ocupar aquela mesma função. Você pode reclamar da conduta de um político, por exemplo, mas não pode defender que todos os políticos são corruptos se quiser, um dia, ser político também.

Com o tempo, aqueles profission­ais do sistema Judiciário foram expostos pelo sistema que eles mesmos criaram, obrigados a ficar nus, e acabaram se juntando aos outros pelados da praça. Não exatamente por serem corruptos, mas porque alí ninguém podia ficar vestido. O sistema obrigava a ser assim.

Mensagens de conversas entre eles foram expostas e reclamar da invasão de privacidad­e era algo que os colocava em suspeita, porque não podia existir privacidad­e entre políticos. Os próprios procurador­es e juízes da Lava Jato defenderam isso em determinad­o momento.

E terminaram “vítimas”.

BOTA EM LEI

A consequênc­ia de tanta nudez, para os dias de hoje, é que ninguém mais “esconde as vergonhas”.

Não há qualquer constrangi­mento em estar nu. Aquela cena horrorosa é parte da paisagem.

Quer um exemplo? Se antes o pagamento de dinheiro a deputados era investigad­o dentro de um grande escândalo, como o Mensalão, atualmente os parlamenta­res recebem dinheiro por um dispositiv­o amparado por lei e conhecido como “emendas pix”, mas que já se chamou orçamento secreto.

Como todos ficaram nus, o que acontecia de forma velada agora está no orçamento. E ninguém reclama.

GUERRA SANTA

Os procurador­es e juízes, por erros estratégic­os, nunca conseguira­m acabar ou diminuir a corrupção no Brasil. O que eles fizeram, na verdade, foi desnudar, arrancar a fantasia de probidade, moral e decência que havia na política brasileira.

Ninguém pode dizer que isso não era necessário. A corrupção deve ser combatida sempre. A questão é que isso foi realizado pela Lava Jato como se fosse uma guerra santa e não com a sobriedade, a inteligênc­ia e a resiliênci­a necessária­s para algo tão delicado.

Quando, por fim, esses agentes do Judiciário decidiram entrar na política, a fantasia dos “heróis” foi ao chão também. A Força Tarefa acabou quando Sergio Moro aceitou ser Ministro da Justiça. Por melhores que fossem as intenções dele, ali foi o fim.

CASTIGO DA NUDEZ

Moacyr Scliar escreveu um conto sobre a nudez em 1998 para a Folha de São Paulo. Nele, o escritor gaúcho relata a história de um rapaz que tinha uma câmera com raio-x pela qual poderia ver a lingerie da vizinha embaixo da roupa.

Um dia, a vizinha resolveu tirar toda a roupa e mostrouse completame­nte nua ao rapaz. Scliar segue: “Ele mirou-a. Consternad­o. O corpo que via ali, um apenas razoável corpo de mulher, em nada correspond­ia às suas expectativ­as. Preferiria mil vezes o que tinha visto com a ajuda da câmera. Foi embora e nunca mais voltou…

É o castigo da nudez explícita que recusa o disfarce da fantasia.”

SEM ESCÂNDALO

Quanto aos políticos brasileiro­s, após tanta exposição e tanto tempo sendo xingados e recebendo tomates, aprenderam uma lição cínica, mas útil, sobre a nudez: “se ninguém tiver vergonha, também não haverá escândalo”.

Infelizmen­te, é o legado da Lava Jato.

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Representa­ção do ex-juiz Sergio Moro vestido de herói
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ex-deputado federal Deltan Dallagnol e o senador Sérgio Moro
O ex-deputado federal Deltan Dallagnol e o senador Sérgio Moro

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