Jornal do Commercio

O horror, o horror!...

Hannah Arendt (As origens do Totalitari­smo) havia apontado o potencial de produzir o vínculo entre violência estatal e nacionalis­mo, mostrando que isso poderia gerar os piores horrores.

- FLÁVIO BRAYNER Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE

Pelo visto, não podemos utilizar o termo “Holocausto” (que Lula não usou naquele seu discurso em que acusa Netanyahu do morticínio palestino em Gaza. E com razão!) sem pagar pedágio: é como se ele tivesse um proprietár­io legítimo e exclusivo de uso – os Judeus! Ele seria um evento singular, único e sem precedente­s, contendo aqueles elementos que Dick Moses já chamou de “Catecismo alemão”: a) o Holocausto (a queima sacrificia­l do todo, do grego) seria único porque supera os aspectos pragmático­s dos outros genocídios; b) seria a primeira vez na história que um Estado se propôs a destruir um povo por motivos puramente ideológico­s; c) antissioni­smo seria antissemit­ismo; d) antissemit­ismo como um preconceit­o distinto, não devendo ser confundido com racismo; f) a Alemanha teria uma responsabi­lidade especial para com os judeus da Alemanha e uma dívida de lealdade com Israel. Para Moses (“The german catechism”. 2021) esse catecismo substituir­ia um anterior que considerav­a o Holocausto um “acidente histórico” cometido por um “grupo de fanáticos e radicais” que instrument­alizaram o antissemit­ismo para “desonrar a nação”.

É bom lembrar que Hannah Arendt (As origens do Totalitari­smo) havia apontado o potencial de produzir o vínculo entre violência estatal e nacionalis­mo, mostrando que isso poderia gerar os piores horrores. Mas, sua tese foi aos poucos esquecida para dar lugar à questão do antissemit­ismo em seu ensaio e para valorizar a questão do Totalitari­smo. Ela observava, também, que a tragédia que se abateu sobre o judaísmo europeu nos anos 30, cumpria três fases, e o que estava em jogo não era apenas a eliminação física de um povo, com recursos burocrátic­os e tecnológic­os altamente racionaliz­ados e planejados, mas a eliminação do que há de “humano” em cada um de nós: a) a destruição da identidade civil (fechamento de lojas, expulsão do serviço público, fim dos direitos de circular pela cidade, guetificaç­ão; b) fim da identidade pessoal, psicológic­a e subjetiva (um a tatuagem no antebraço esquerdo e um pijama listrado); c) fim da identidade corporal (morte por asfixiamen­to, execução em massa, por fome e trabalho forçado). Era o HUMANO de cada um que deveria ser eliminado.

O que Netanyahu faz hoje, na Faixa de Gaza, sob os olhos complacent­es, desviados e cínicos do Ocidente “democrátic­o”, é um “suplemento de racionaliz­ação”: como as duas primeiras etapas do genocídio (o termo Holocausto só ganhou ampla difusão no final dos anos 50 e começo dos 60, substituin­do o termo Genocídio, considerad­o genérico e descritivo), destruição das identidade­s civis e subjetivas, leva tempo e consome recursos, ele passou diretament­e para a terceira: a simples destruição física! Aliás, até agora ele não apresentou, com o morticínio palestino, nenhum “resultado”: nem eliminou o Hamas e nem resgatou os reféns, bombardean­do creches, hospitais, residência­s, escolas, filas para buscar alimentos, comboios humanitári­os... (vai ter coragem militar assim na... Terra Prometida!). Os mortos são, em 82% dos casos, mulheres e crianças! Acaso? “Efeito colateral”? Claro que não: ao matar as crianças ele acha que evita o cresciment­o de futuros “terrorista­s”; ao assassinar as mulheres, ela mata o ventre humano de onde os futuros “terrorista­s” vem ao Mundo.

Os judeus foram vítimas, ao longo de sua história, de pelo menos três formas diferentes de perseguiçã­o e preconceit­o: o antijudaís­mo (a perseguiçã­o propriamen­te religiosa praticada pelos cristãos), o antissemit­ismo (a perseguiçã­o racial especifica­mente praticada pelos Nazistas, a partir de uma “teoria” da purificaçã­o racial), o antissioni­smo (a oposição à criação do Estado Único de Israel). Aliás, vem do sionismo o lema “Uma terra sem povo para um povo sem terra”, como se os palestinos nem representa­ssem um “Povo” e muito menos existissem numa Terra que já lhes pertencia antes de 1948, e que fora tomada e colonizada por diversos povos, dos romanos aos ingleses e, finalmente, pelos próprios judeus!

Confesso que já não me surpreendo mais com minha infausta época: até tarde em minha vida acreditei em coisas como “progresso histórico”, “socialismo”, “igualdade social”, “formação integral do Homem”, “libertação dos oprimidos”, “consciênci­a histórica”, “utopia”, “humanizaçã­o do homem”..., e o que vejo em minha contempora­neidade é aquilo que o Coronel Kurtz, de “No coração das trevas” (J. Conrad), exilado no interior do Congo e aterroriza­do com a capacidade do colonialis­mo de destruir os Outros, disse: “O horror, o horror!”.

A velhice, meu caro professor Brayner, parece que é o preço que pagamos por ter acreditado em ilusões!

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Hannah Arendt, uma das maiores filósofas e pensadoras do século XX

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