O horror, o horror!...
Hannah Arendt (As origens do Totalitarismo) havia apontado o potencial de produzir o vínculo entre violência estatal e nacionalismo, mostrando que isso poderia gerar os piores horrores.
Pelo visto, não podemos utilizar o termo “Holocausto” (que Lula não usou naquele seu discurso em que acusa Netanyahu do morticínio palestino em Gaza. E com razão!) sem pagar pedágio: é como se ele tivesse um proprietário legítimo e exclusivo de uso – os Judeus! Ele seria um evento singular, único e sem precedentes, contendo aqueles elementos que Dick Moses já chamou de “Catecismo alemão”: a) o Holocausto (a queima sacrificial do todo, do grego) seria único porque supera os aspectos pragmáticos dos outros genocídios; b) seria a primeira vez na história que um Estado se propôs a destruir um povo por motivos puramente ideológicos; c) antissionismo seria antissemitismo; d) antissemitismo como um preconceito distinto, não devendo ser confundido com racismo; f) a Alemanha teria uma responsabilidade especial para com os judeus da Alemanha e uma dívida de lealdade com Israel. Para Moses (“The german catechism”. 2021) esse catecismo substituiria um anterior que considerava o Holocausto um “acidente histórico” cometido por um “grupo de fanáticos e radicais” que instrumentalizaram o antissemitismo para “desonrar a nação”.
É bom lembrar que Hannah Arendt (As origens do Totalitarismo) havia apontado o potencial de produzir o vínculo entre violência estatal e nacionalismo, mostrando que isso poderia gerar os piores horrores. Mas, sua tese foi aos poucos esquecida para dar lugar à questão do antissemitismo em seu ensaio e para valorizar a questão do Totalitarismo. Ela observava, também, que a tragédia que se abateu sobre o judaísmo europeu nos anos 30, cumpria três fases, e o que estava em jogo não era apenas a eliminação física de um povo, com recursos burocráticos e tecnológicos altamente racionalizados e planejados, mas a eliminação do que há de “humano” em cada um de nós: a) a destruição da identidade civil (fechamento de lojas, expulsão do serviço público, fim dos direitos de circular pela cidade, guetificação; b) fim da identidade pessoal, psicológica e subjetiva (um a tatuagem no antebraço esquerdo e um pijama listrado); c) fim da identidade corporal (morte por asfixiamento, execução em massa, por fome e trabalho forçado). Era o HUMANO de cada um que deveria ser eliminado.
O que Netanyahu faz hoje, na Faixa de Gaza, sob os olhos complacentes, desviados e cínicos do Ocidente “democrático”, é um “suplemento de racionalização”: como as duas primeiras etapas do genocídio (o termo Holocausto só ganhou ampla difusão no final dos anos 50 e começo dos 60, substituindo o termo Genocídio, considerado genérico e descritivo), destruição das identidades civis e subjetivas, leva tempo e consome recursos, ele passou diretamente para a terceira: a simples destruição física! Aliás, até agora ele não apresentou, com o morticínio palestino, nenhum “resultado”: nem eliminou o Hamas e nem resgatou os reféns, bombardeando creches, hospitais, residências, escolas, filas para buscar alimentos, comboios humanitários... (vai ter coragem militar assim na... Terra Prometida!). Os mortos são, em 82% dos casos, mulheres e crianças! Acaso? “Efeito colateral”? Claro que não: ao matar as crianças ele acha que evita o crescimento de futuros “terroristas”; ao assassinar as mulheres, ela mata o ventre humano de onde os futuros “terroristas” vem ao Mundo.
Os judeus foram vítimas, ao longo de sua história, de pelo menos três formas diferentes de perseguição e preconceito: o antijudaísmo (a perseguição propriamente religiosa praticada pelos cristãos), o antissemitismo (a perseguição racial especificamente praticada pelos Nazistas, a partir de uma “teoria” da purificação racial), o antissionismo (a oposição à criação do Estado Único de Israel). Aliás, vem do sionismo o lema “Uma terra sem povo para um povo sem terra”, como se os palestinos nem representassem um “Povo” e muito menos existissem numa Terra que já lhes pertencia antes de 1948, e que fora tomada e colonizada por diversos povos, dos romanos aos ingleses e, finalmente, pelos próprios judeus!
Confesso que já não me surpreendo mais com minha infausta época: até tarde em minha vida acreditei em coisas como “progresso histórico”, “socialismo”, “igualdade social”, “formação integral do Homem”, “libertação dos oprimidos”, “consciência histórica”, “utopia”, “humanização do homem”..., e o que vejo em minha contemporaneidade é aquilo que o Coronel Kurtz, de “No coração das trevas” (J. Conrad), exilado no interior do Congo e aterrorizado com a capacidade do colonialismo de destruir os Outros, disse: “O horror, o horror!”.
A velhice, meu caro professor Brayner, parece que é o preço que pagamos por ter acreditado em ilusões!