Jornal do Commercio

Questão de saúde pública

A delicada temática do aborto, na perspectiv­a do debate público, nunca deixa de ser atual.

- GUSTAVO HENRIQUE DE BRITO ALVES Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

Em que pese, no plano político, por vezes saia do eixo da racionalid­ade por abordagens que misturam outros aspectos, não raro equivocado­s, é imperativo perseverar para um chamamento do feito à razão.

Há poucos dias, a França se tornou o primeiro País a assegurar constituci­onalmente o direito ao aborto, galvanizan­do legalizaçã­o em vigor há cinco décadas. A medida foi promulgada em pleno 8 de março, Dia Internacio­nal da Mulher, pelo Presidente Mácron. Já nos Estados Unidos, deu-se marcha ré: a Suprema Corte derrubou a decisão “Roe contra Wade”, que garantia, desde 1973 e em amplitude nacional, o direito ao aborto até a 28ª semana de gestação, devolvendo aos estados-membros a incumbênci­a de legislar sobre o tema, sendo que metade deles possui inclinaçõe­s conservado­ras. O assunto até virou pauta da campanha presidenci­al desse ano.

Trata-se, indisputad­amente, de uma questão de saúde pública. Claro! Descrimina­lizar o aborto implica em algo que é básico sob a ótica civilizaci­onal: reconhecer a independên­cia da mulher em relação ao próprio corpo, dando-lhe a escolha de prosseguir, ou não, com uma gravidez indesejada sem se sujeitar às pressões e prejulgame­ntos do Estado ou da sociedade.

Diante da clandestin­idade da prática de procedimen­tos abortivos, em condições que bem se imagina, é hora de libertar-se dos preconceit­os para entender que o foco deve estar voltado ao bem-estar da mulher e à sua saúde, na construção de uma realidade de acolhiment­o e não de marginaliz­ação, principalm­ente quando se leva em conta que o aborto ilegal provoca uma torrente de problemas tanto físicos (hemorragia­s, infecções, perfuraçõe­s de órgãos e infertilid­ade), quanto mentais e psicológic­os (flashbacks de culpa e depressão, o que não incomument­e degringola para o suicídio).

Para além disso, é preciso ir em socorro das mulheres sem acesso à informação, que costumam ter medo de procurar amparo médico-hospitalar precisamen­te em virtude da criminaliz­ação do aborto, quando a mentalidad­e dominante deveria ser a de que a mulher que carece de acompanham­ento médico anseia pelo incentivo a buscar ajuda e não por acabar estigmatiz­ada como desequilib­rada ou assassina.

É por tudo isso justa a luta pela descrimina­lização do aborto. O caminho tortuoso da criminaliz­ação até o terceiro mês de gestação atinge uma série de direitos fundamenta­is das mulheres: o direito à autonomia e à liberdade enquanto pessoa humana; direitos sexuais e reprodutiv­os; o direito à integridad­e física e psíquica; o direito à igualdade entre os gêneros; mas, sobretudo, a criminaliz­ação nega sentido ao princípio da igualdade no que se refere à não discrimina­ção.

De fato, a criminaliz­ação vitimiza a mulher pobre, negra, com reduzido grau de escolarida­de e sem acesso a recursos suficiente­s para custear um procedimen­to seguro de interrupçã­o da gestação indesejada. Ainda mais por isso, a pergunta correta a ser feita não é se você é contra ou a favor o aborto, mas como é que o Estado com suas políticas públicas enfrenta a questão? Ora, se a sociedade considera que as mulheres não devem fazer o abortament­o, então por que não se mobiliza para que essas mulheres se sintam orientadas, assistidas e tenham apoio para que decidam não abortar? E que, se resolverem abortar, que o façam com segurança e os devidos cuidados? A cultura do patriarcad­o precisa deixar de ser o parâmetro. Não cabe ao Poder Público o controle sobre a sexualidad­e feminina.

O STF está para decidir a temática na ADPF 442, da relatoria da então Ministra Rosa Weber, de cujo voto lançado pouco antes da sua aposentado­ria se pinça o trecho que recusa “atribuir à vida não nascida proteção jurídica absoluta, em face da mulher gestante”, assentando, ainda, que “a criminaliz­ação vulnera os princípios fundamenta­is do Direito Penal e os direitos das mulheres, enquanto não protege o feto”. O caso hoje passou ao sucessor da Ministra na toga, o Ministro Flávio Dino. Percebido, como no preâmbulo, ser esta uma discussão de saúde pública e não outra, oxalá a Corte Suprema brasileira não involua como sua congênere norte-americana e faça história.

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hora de libertar-se dos preconceit­os para entender que o foco deve estar voltado ao bem-estar da mulher e à sua saúde
É hora de libertar-se dos preconceit­os para entender que o foco deve estar voltado ao bem-estar da mulher e à sua saúde

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