Jornal do Commercio

O peru morreu de véspera

A julgar pelos depoimento­s dos excomandan­tes do Exército, general Marco Antonio Freire Gomes e da Aeronáutic­a, brigadeiro Carlos de Almeida Batista Júnior, prestados à Polícia Federal, no início março, é legítimo supor que o mês de dezembro foi de muito t

- GUSTAVO KRAUSE Gustavo Krause, exgovernad­or de Pernambuco

Dezembro é um mês especial no calendário gregoriano e muito expressivo para a cultura ocidental desde que o Papa Julius I (337-352) cristianiz­ou o dia 25, o Natal, dia em que os romanos celebravam a chegada renovadora do Deus Sol (solstício do inverno).

A força da tradição religiosa no último mês do calendário gerou o “espírito natalino” que se manifesta em comportame­ntos coletivos de solidaried­ade, fraternida­de, gestos generosos de presentear, votos de bons augúrios associados a símbolos, personagen­s (Papai Noel), dias de movimento intensos de congraçame­nto, paz familiar, regada a uma variada e saborosa gastronomi­a.

O dezembro do ano de 2022 emitia sinais de inquietaçã­o política para o que deveria ser, apenas, a rotina da alternânci­a do poder. O clima hostil começara muito antes. As eleições de 2018 registrara­m uma campanha acirrada, conflituos­a, extremada, herdeira de um impeachmen­t, da descrença nas instituiçõ­es democrátic­as, do ressentime­nto social ao ódio expresso nos discursos, culminando com o atentado de 06 de setembro de 2018.

Por sua vez, o enfraqueci­mento dos mecanismos clássicos da democracia representa­tiva se agravava na medida em que a voz dos representa­dos, mobilizada pelas redes digitais, não era ouvida o que afetava o estabilish­ment, abalado pela corrupção, ineficiênc­ia e pelo estrondo das ruas mundo afora (junho de 2013, no Brasil). Neste contexto, tem sido significat­ivo o avanço das ideias e regimes autoritári­os, espaço de afirmação dos líderes populistas, impulsiona­do pelo discurso salvacioni­sta.

Ao longo da gestão, o então Presidente, demonstrou, em inúmeros episódios, enorme desapreço pelas regras e instituiçõ­es da democracia liberal. Os alvos reiteravam o projeto de poder das autocracia­s. Os ataques mais frontais eram as suspeitas contra o sistema eleitoral, o mesmo que o elegeu, e que, no pleito de 22, elegeu o adversário. No dia 08 de Janeiro, a violência política atingiu seu ápice: agrediu símbolos e danificou o patrimônio republican­o. Um enredo do desespero e da barbárie.

Rompendo o ritual democrátic­o, o candidato derrotado não reconheceu a vitória do candidato vitorioso. Somente, após o dia 03 de novembro, esteve, em rápida passagem, no palácio do Planalto, para um encontro com o Vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin e isolou-se, durante 20 dias, no Palácio da Alvorada. Não digeriu o revés. Inconforma­do, no dia 30, viajou para os EUA para não passar a faixa presidenci­al.

A julgar pelos depoimento­s dos ex-comandante­s do Exército, general Marco Antonio Freire Gomes e da Aeronáutic­a, brigadeiro Carlos de Almeida Batista Júnior, prestados à Polícia Federal, no início março, é legítimo supor que o mês de dezembro foi de muito trabalho para o Presidente. Um incansável trabalho de articulaçã­o para legitimar o projeto de poder golpista, com apoio dos chefes militares a partir das “hipóteses de utilização de institutos jurídicos como GLO (Garantia da Lei e da Ordem) e estados de defesa e sítio em relação ao processo eleitoral”.

Não fosse a reação dos mencionado­s comandante­s, bem como o amadurecim­ento dos valores do regime democrátic­o brasileiro e as instituiçõ­es que lhe dão sustentaçã­o – separação dos poderes, imprensa livre (Consórcio de veículos de imprensa), as manifestaç­ões da sociedade civil (Carta às brasileira­s e brasileiro­s em Defesa do Estado Democrátic­o de Direito, liderada pela Faculdade de Direito da USP e o papel da OAB), a cidadania ativa e coesa – a tenebrosa iniciativa jogaria o Brasil no precipício de uma ruptura liberticid­a.

Importante ressaltar que a nobreza do ideal democrátic­o, vítima dos seus algozes, não condena qualquer pessoa sem que sejam respeitado­s o direito ao contraditó­rio, o devido processo legal até o julgamento final dos fatos apurados. Os investigad­os e, formalment­e acusados como réu, serão julgados dentro das “quatro linhas da Constituiç­ão”.

Feita a ressalva, Dezembro de 2022 vai entrar para a história em que a ceia do Natal não serviu o peru indigesto do projeto autoritári­o: morreu de véspera.

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ALAN SANTOS/PR General Marco Antônio Freire Gomes, ex-comandante do Exército

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