Jornal do Commercio

Compra o lixo, João

Não tem Praia Limpa que aguente toneladas chegando de todos os córregos, canais e rios ao mesmo tempo.

- SÉRGIO GONDIM Sérgio Gondim, médico

Apraia foi dormir limpa, limpinha, como resultado do Praia Limpa e do batalhão de funcionári­os da prefeitura passando o pente fino. Dormiu limpa e acordou imunda.

Como o Recife gosta de superlativ­os, a maior sujeira de orla em linha reta. A culpa não foi dos banhistas, não foi descuido dos garis e seria injusto culpar o prefeito. Foi vingança da maré. Bastou uma pancada de chuva no dia anterior, arrastando o lixo da cidade para desaguar no oceano Atlântico e, na virada, a maré devolveu com a mesma moeda. Não tem Praia Limpa que aguente toneladas chegando de todos os córregos, canais e rios ao mesmo tempo.

Uma caminhada de quilômetro­s e uma vergonha danada, plástico sendo o campeão disparado. Em primeiro lugar, os copos, em segundo plásticos indiferenc­iados, em terceiro, empate entre potes de margarina e goiabada. Em posição mais modesta estão os preservati­vos, usados.

Algumas curiosidad­es: qual terá sido o caminho percorrido pela embalagem de chocolate Suíço, até chegar na praia. E a tampa da caixa de Johnnie Blue devolvida à terra firme, atestando que a origem do lixo não está só na pobreza. Um ou outro peixe maiorzinho, faltando a placa de aqui jaz um Baiacu vítima da poluição do mar, sem poder protestar porque se engasgou com a embalagem plástica de um lanche infeliz.

Chamou muito a atenção o fato de que em quilômetro­s de orla, em meio ao lixo de todo tipo e origem, não havia uma só lata de refrigeran­te ou cerveja, apesar do enorme consumo. Não é difícil entender, basta seguir o dinheiro. A reciclagem de latinhas é remunerada e os coletores as vezes exageram chegando a pedir o descarte antes do consumidor acabar de beber, para colocar no saco e vender no peso.

O plástico certamente é bem mais barato e pouco atrativo, mas se fosse remunerado de forma proporcion­al ao dano que provoca, poderia virar o jogo.

Alternativ­as? Esperar mais de um século para educar as pessoas, ampliar a infraestru­tura de coleta, reduzir as diferenças. Um Compaz em cada esquina, escolas, coisa para gerações.

Com uma verba modesta em relação ao que é gasto com shows nem sempre educativos, que tal comprar o lixo plástico? Usando um percentual da taxa de coleta, toneladas seriam recolhidas antes de chegar ao córrego que vai dar no mar. Haveria economia na varrição, na desobstruç­ão de galerias, nos gastos com inundações, sem falar na qualidade da cidade e na saúde da população.

Há poucos dias foi publicado no The New England Journal of Medicine, o resultado de um estudo pioneiro que demonstrou aumento significat­ivo de infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral e morte nos humanos em quem foram encontrado­s micro e nano partículas de plástico nas carótidas. A relação causal foi considerad­a fortemente sugestiva, mas ainda não foi definida a via de entrada do plástico, se no alimento, na água, no ar ou de todo lugar. As partículas penetram nas células e teriam ação nas mitocôndri­as interferin­do na produção de radicais livres e inflamação crônica, base da ateroscler­ose. Por enquanto, só sabemos que é assim: foi demonstrad­o um possível novo fator de risco para doença cardiovasc­ular.

Antes que as dúvidas sejam esclarecid­as, o Recife superlativ­o poderia se transforma­r na cidade de canais e praias mais limpas em linha reta, de galerias mais livres, de maior coleta remunerada de lixo plástico, de maior respeito à cidadania, além, claro, do maior carnaval em linha reta do mundo. Poderia sair na frente em relação à ameaça global do plástico e se tornar a cidade do mundo com menor quantidade de partículas de plástico nas artérias, em linha reta.

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THIAGO LUCAS/ ARTES SJCC Lixo na praia

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