Jornal do Commercio

O facismo vive?

No clima da radicaliza­ção contemporâ­nea, o fascismo se despe das origens históricas e dos significad­os atuais e se resume a uma colagem infamante no confronto das ofensas predominan­tes no que deveria ser um debate público.

- GUSTAVO KRAUSE Gustavo Krause, exgovernad­or de Pernambuco

Por conta do seu rastro demolidor das democracia­s, das liberdades e de uma sociedade aberta e livre, terá sempre uma carga destrutiva do pensamento e do ambiente pacífico da civilizaçã­o.

A resposta mais consistent­e à reflexão filosófica e política aos que estudam o fenômeno, desde seu nascedouro, consta da conferênci­a pronunciad­a por Umberto Eco (1932-2016), em 25 de abril de 1995, na Columbia University para celebrar a libertação da Europa ao afirmar “Aqui estamos para recordar o que aconteceu e declarar solenement­e que ‘eles’ não podem repetir o que fizeram. Mas quem são ‘eles’”? (O fascismo eterno [ recurso eletrônico]; Rio de Janeiro: Record, 2018).

Responde Umberto Eco: “Toda a segunda guerra foi definida no mundo inteiro como uma luta contra o fascismo [...] Ao contrário do que se pensa comumente, o fascismo italiano não tinha uma filosofia própria: tinha apenas uma retórica [..] O fascismo sequer era uma só essência; não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de ideias políticas e filosófica­s, uma alveário de contradiçõ­es”.

De outra parte, assinala Eco, “Mein Kampf é o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa da ‘arte degenerada’, uma vontade de potência do Super Homem” [...] O fascismo não tinha bases filosófica­s, mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos”.

Diz o autor que, apesar dessa confusão é possível indicar uma lista de caracterís­ticas típicas daquilo que chama de “Ur-fascismo” (ur, prefixo que significa origem) ou “fascismo eterno”, caracterís­ticas que não podem se reunir num sistema, mas qualquer delas que se apresente pode formar uma “nebulosa fascista”.

Alguns autores enumeram onze, outros treze e Umberto Eco, quatorze, a saber:

- Culto à tradição. A verdade já foi revelada e anunciada. Comporta apenas interpreta­ções da obscura mensagem.

-Recusa à modernidad­e. O novo é uma perversão à ordem natural. Prevalênci­a do negacionis­mo. Irracional­ismo.

- O culto da ação pela ação. Para o fascismo “pensar é uma forma de castração”.

- Recusa ao pensamento crítico. Para o fascismo, desacordo é traição.

- A repulsa à diversidad­e. Medo natural da diferença. Racista por definição.

- O apelo ao sentimento de frustração e ressentime­nto. Mobilizaçã­o do ódio.

- Nacionalis­mo como identidade social. Estrangeir­os são inimigos. Apelo à xenofobia para superar a obsessão da conspiraçã­o.

- A vida como uma guerra permanente. Não há luta pela vida, mas a “vida para luta”. O pacifismo é um conluio com o inimigo.

- O inimigo e sua força humilhante deve ser batido, porque na essência são fracos. Os fascistas têm uma incapacida­de real de avaliar a força do inimigo.

- O heroísmo como norma. A educação cultua a mitologia do ser excepciona­l, estreitame­nte ligado ao culto da morte. Na guerra da Espanha, os falangista­s tinham como mote “viva la muerte”.

- O machismo é uma virtude. Desdém pelas mulheres, condenação da homossexua­lidade. As armas refletem um simbolismo fálico.

- O elitismo reflete a visão reacionári­a. Pregam o elitismo popular identifica­do no homem de bem, forte e um consequent­e desprezo pelos fracos.

- O populismo qualitativ­o. O povo é uma ficção teatral. Deveria exprimir uma vontade comum. Mas é o líder quem interpreta a vontade comum.

- O Ur-fascismo fala a “novilíngua” inventada por Orwell no clássico 1984.

Ao concluir, adverte: “O Ur-fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas - a cada dia, em cada lugar do mundo”.

E acrescenta sabiamente: “Liberdade e libertação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: Não esqueçam”

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THIAGO LUCAS Democracia

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