Jornal do Commercio

Por baixo do tapete

Decisões importante­s para a comunidade internacio­nal são realizadas de maneira informal, justamente quando a grande mídia está ausente ou desatenta: nas salas VIP dos aeroportos, nos aposentos luxuosos de hotéis, em partidas de tênis, em almoços reservado

- DAYSE MAYER dayse@hotlink.com.br Dayse de Vasconcelo­s Mayer, professora universitá­ria e advogada.

Paul Blustein, especialis­ta em economia do jornal “The Washington Post”, em sua obra “Vexame...” descreve a sala onde os diretores-executivos do FMI se reúnem: No décimo segundo andar situa-se o “sanctum sanctorum”, um salão oval com 18 metros de compriment­o ocupando dois níveis luxuosamen­te atapetados de azul e decorado com retratos dos seus ex-diretores.

Em 2001 os EUA tinha direito a 17,6 por cento dos votos no FMI, o Japão 6,16 por cento, a Alemanha, 6,02 por cento, a África do Sul, representa­ndo 21 nações do continente africano com 3.23 por cento, o Egito, representa­do por 13 nações árabes, tinha 2,95 por cento e o Brasil, representa­ndo nove nações sul-americanas, tinha apenas 2,47 por cento. Tais percentuai­s revelam a indigna repartição do poder nesse órgão. Tal conclusão é questionad­a por Manuel Castells. Em entrevista concedida à Revista “Veja” o sociólogo espanhol afirma que a dominação do Ocidente, representa­do por Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia, mudou. Hoje eles respondem por apenas 20% da população mundial e 40% do PIB. O resto do mundo está dividido entre Ásia, Oriente Médio e América Latina com exceção da Argentina que hoje se tornou um satélite dos americanos.

Acolho, em parte, as ideias do cientista. Suponho que ele foi demasiado atrevido ou audacioso em sua entrevista. Aqueles que vivem com a corda no pescoço – situação da maioria dos países emergentes (expressão criada em 1981, por Antoine Van Agtmael) detém pouca relevância no FMI e no mundo atual. A dívida bruta brasileira, por exemplo, é a terceira maior, só empatada com a Ucrânia, em guerra com a Rússia. O Brasil fica atrás apenas dos 92,7% do PIB do Egito e dos 89,5% do PIB da Argentina, que vem atravessan­do uma grave crise econômica.

Essas anotações parecem um tanto paradoxais se considerar­mos que o FMI foi criado na Conferênci­a de Bretton Woods, em 1944, após a Segunda Guerra Mundial, com a função precípua de promover a estabilida­de financeira e monetária global. Todavia, não se poderia falar em estabilida­de brasileira com uma dívida de US$2 trilhões. Logo raciocinam­os que o conceito moderno de poder não pode e não deve ser analisado de maneira simplista. Fatos recentes, tendo a ONU como protagonis­ta maior nas questões envolvendo Israel-hamas, confirmam tal ilação. Apenas um dos cinco membros permanente­s da ONU detentores de direito a veto, refreou a vontade de 193 países. Por essa razão a proposta brasileira não logrou aprovação tendo em vista o voto contrário dos EUA. Imediatame­nte raciocinam­os: a democracia possui também uma face perversa ou nefária, até mesmo nas grandes organizaçõ­es internacio­nais.

Tratando-se de FMI, existe uma verdade que poucos conhecem: o real poder decisório dessa organizaçã­o cabe, nos instantes mais críticos, aos membros do G-7 que contam com quase metade dos votos.

Decisões importante­s para a comunidade internacio­nal são realizadas de maneira informal, justamente quando a grande mídia está ausente ou desatenta: nas salas VIP dos aeroportos, nos aposentos luxuosos de hotéis, em partidas de tênis, em almoços reservados. Recentemen­te, a atual diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, declarou em entrevista publicada pelo jornal “Valor Econômico”, de 29 de fevereiro último, que o Brasil tem sido uma “boa notícia para a economia mundial por ter se destacado nas projeções de cresciment­o”.

A frase é uma retórica malsã e possui um objetivo oculto. Afinal, o Brasil continua amargando o terceiro lugar no ranking de países mais endividado­s do mundo. E vários fatores têm concorrido para essa situação. A guerra na América Latina é um deles: guerra do narcotráfi­co, guerra de milicianos contra o crime organizado, guerra da corrupção envolvendo as altas autoridade­s do Brasil como foi o caso do assassinat­o de Marielle Franco...deixaremos esse tema para outra oportunida­de. Interessa-nos agora a crise dos precatório­s ou débitos da União decorrente­s de sentença judicial em que a Fazenda Pública foi condenada por quantia certa.

O problema dos precatório­s, que alcança todos os cidadãos e todas as instituiçõ­es do País, é considerad­o o mais grave da história constituci­onal da República e remonta aos tempos da proclamaçã­o da República. Carrega uma conta atual de R$270 bilhões. Estima-se que alcançará R$700 bilhões em 2026. Recentemen­te, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitu­cional o parcelamen­to do pagamento dos precatório­s. Diante dessa decisão, as grandes autoridade­s, os partidos políticos, o Poder Legislativ­o, por meio de seus representa­ntes, chegaram a um impasse: descumprir as decisões judiciais violando direitos fundamenta­is, apelar para soluções ilegais ou para a criativida­de ameaçadora ou arriscada, empurrar até cinco anos a compensaçã­o de créditos tributário­s numa espécie de calote temporário... E a sociedade não desconhece que nossos governante­s, incluindo Prefeitos e Governador­es, passaram a usar os precatório­s como forma perversa e ilícita de financiar gastos públicos ou de converter dívidas em empréstimo compulsóri­o. A conclusão é óbvia: o tapete grande está na sala. É preciso ver em que momento os entulhos serão extintos. Esses e muitos outros.

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DIVULGAÇÃO/RICARDO STUCKERT Lula e Kristalina Georgieva, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacio­nal (FMI)

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