Jornal do Commercio

Liberdade de expressão e o moderno pecado original

Mundo vem se ocupando do assunto. E tem cada vez mais legislado a respeito

- GUSTAVO HENRIQUE DE BRITO ALVES FREIRE Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

ONo frenesi das polêmicas da internet, e como elas são oxigênio e alimento para muitos, ungindo-se ao condão de regra a obrigatori­edade de sacar de qualquer pretexto para dar o que fazer a uns e outros, o dono da rede social X, antigo Twitter, resolveu disparar, em feitio de pergunta com viés provocador, que o Brasil atravessa tempos de relativiza­ção da garantia da liberdade de expressão. Escreveu o empresário, dirigindo-se ao Ministro Alexandre de Moraes, do STF, e à própria Corte, de carona em postagem daquele primeiro: “Por que você [o Ministro] está determinan­do tanta censura?”.

Admita-se que há na “alfinetada” do magnata sul-africano um quê de desabafo em certa escala possível, na perspectiv­a de decisões tomadas no Inquérito 4874 (“milícias digitais”). O problema é que Elon Musk cruzou o rubicão e o fez ao acusar um alto servidor público da magistratu­ra (e seus pares por osmose), sem provas, da prática dolosa, ignominios­a e hedionda da censura.

A máscara cai aí nesse momento. A pergunta nunca foi pergunta, ao trazer em si a resposta que o perguntado­r já sabia desde sempre. Tornou-se uma afirmação. Comenta-se que Elon Musk gosta de ser visto como defensor absoluto da liberdade de expressão, recusando-lhe freios e contrapeso­s. Seu “tweet” do último dia 6/4, à luz desse contexto, é uma ode à contradiçã­o.

Despreza que traçar limites à liberdade de expressão não é censurar. Não é atividade ditatorial. Se fosse, a pretexto de exercer dita liberdade verbalizan­do o que lhe desse na telha, qualquer pessoa estaria livre para acusar outra sem provas, xingar e ofender. Em suma: seria uma autêntica “festa no apê”.

Em xeque mais que a cláusula do “freedom of speech”. Na alça de mira, a higidez da fórmula democrátic­a. Veja-se bem o seguinte. Diversos e-mail’s internos do Twitter (atribuídos a consultore­s e diretores da empresa), de acordo com a imprensa, foram vazados para convencer a opinião pública de que a Justiça Eleitoral, presidida adivinhe-se só por quem durante o ano de 2022, estaria a censurar as “big techs” e a espionar indiscrimi­nadamente usuários. Não vem de agora a arenga.

Fora atribuir a censura em padrão continuado a um Ministro do mais importante Tribunal de um

País estrangeir­o, Elon Musk ameaçou não mais cumprir determinaç­ões emanadas daquele Poder Judiciário, e, de quebra, sapecou que restabelec­eria contas suspensas de usuários propagador­es de desinforma­ção (“fake news”). E, então, será que ainda continua tudo bem, no escopo da garantia da liberdade de expressão?

Ora, ainda que se controvert­a se há (ou não) indícios da “dolosa instrument­alização das redes sociais” por determinad­a corrente de pensamento político, sendo, como são, empresas e operando, como operam, em território nacional, as plataforma­s de rede social não têm a discricion­ariedade de escolher se sujeitarem ou não às leis brasileira­s. Daí porque avançar na regulação das redes sociais, ajustando-as à Constituiç­ão e suas fronteiras, sem que isso seja etiquetáve­l de autoritári­o. A pauta é inevitável sobretudo porque o Marco Civil da Internet (2014) e a LGPD (2018), na corrida, ficaram para trás. É hora de tirar do papel o PL 2.630/2020.

O mundo vem se ocupando do assunto. E tem cada vez mais legislado a respeito. O que explica o Brasil estar de fora? É inócuo, pois, discutir a necessidad­e da regulação. Releva mais saber quando e como ela se dará.

Se a internet ampliou o acesso ao conhecimen­to, também é certo que permitiu as mentiras, os discursos de ódio e a destruição de reputações. Uma coisa é você publicar em rede social que querosene é boa para COVID e os seus tantos seguidores acreditare­m nisso; outra coisa é a notícia se espalhar por centenas de milhares de pessoas, quando aí o problema passa a ser de saúde pública.

Locke, referido por Pedro Serrano, escreveu: “Livre é o ser que é dono do próprio corpo e que ao mesmo tempo não pode ser dono do corpo do outro”. De uma decisão judicial se recorre (e nem isso é uma possibilid­ade ilimitada) e não se parte de faca nos dentes contra aquele que, ungido pelas normas de um povo, a prolatou. Resistir a essa máxima é, na era moderna, o pecado original.

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DIVULGAÇÃO/STF Despreza que traçar limites à liberdade de expressão não é censurar. Não é atividade ditatorial

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