Jornal do Commercio

Sob os riscos da nulidade

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Conselheir­o da OAB federal e doutor em Direito Penal pela USP, Alberto Toron vai além ao avaliar que o Supremo fez uma interpreta­ção extensiva tanto do instituto da conexão quanto da regra sobre a prerrogati­va de foro privilegia­do. Toron indica que, por esse motivo, o STF não teria competênci­a para investigar o ex-presidente em certos casos, uma vez que Bolsonaro perdeu a prerrogati­va de foro ao deixar a Presidênci­a, devendo, portanto, ser julgado na primeira instância, conforme estabelece a lei.

Para o criminalis­ta, a amplitude da interpreta­ção da competênci­a guarda semelhança­s com o que ocorreu na Operação Lava Jato, quando o então juiz Sérgio Moro foi criticado por avocar para si a competênci­a de várias investigaç­ões com base na regra da conexão.

“Isso fez com que a competênci­a de um único ministro do STF virasse, como se dizia e como se criticava em relação ao juiz Moro, uma espécie de ‘juiz nacional’, a quem compete conhecer a respeito de todos os fatos que minimament­e possa atinar com Bolsonaro e bolsonaris­tas”, pondera.

Toron e Badaró também ressaltam que pode estar havendo uma interpreta­ção ampla de uma das regras de competênci­a, que permite ao STF julgar casos quando os crimes ocorrem em suas dependênci­as. Como o inquérito das fake news, aberto para apurar ataques aos ministros da Corte e no qual o Bolsonaro é um dos investigad­os.

Ex-ministro da Justiça no governo de Dilma Rousseff, o advogado Eugênio Aragão e o presidente do ibc crim (instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Renato Vieira, concordam que o Supremo é a instância adequada para julgar os casos relacionad­os ao ex-presidente. Ambos destacam que, embora as investigaç­ões sejam complexas, identifica­m uma interligaç­ão entre todos os procedimen­tos até o momento, o que justifica os inquéritos sob o gabinete de Moraes.

O advogado e professor da USP e ESPM, Rafael Mafei, também avalia que, a princípio, não há irregulari­dade de competênci­a. Mafei, porém, pondera sobre a excessiva amplitude de certos inquéritos, como o das milícias digitais, que investiga desde as tentativas de golpe de Estado até o caso das joias sauditas, revelado pelo Estadão.

OS CASOS PARA IMPEDIMENT­O DE MORAES

Os vários inquéritos sob a relatoria de Moraes levaram a defesa do ex-presidente a solicitar por mais de uma vez o afastament­o do ministro da condução das investigaç­ões. Os advogados argumentar­am que Moraes estaria simultanea­mente atuando como vítima e julgador. No entanto, a tese foi rejeitada em fevereiro pelo presidente da Corte, Luís Roberto Barroso.

Sampaio, e os advogados criminalis­tas Davi Tangerino e Pierpaolo Bottini concordam com a decisão de Barroso. Eles argumentam que o ministro não precisa se considerar impedido, já que os ataques têm como alvo o Estado democrátic­o de Direito e a própria sociedade brasileira. Na mesma linha, Aragão, Mafei e Vieira avaliam que os investigad­os não podem tentar criar impediment­os ao ofender magistrado­s, como ocorreu quando o ex-presidente e seus aliados atacaram não só Moraes, mas outros ministros da Corte.

Badaró ressalta que, teoricamen­te, não há motivo para questionar a imparciali­dade. No entanto, ele pondera que as revelações feitas pelo próprio Moraes no início deste ano, quando afirmou que a investigaç­ão sobre os atos golpistas indicava planos para prendê-lo e enforcá-lo, poderiam ser motivos para que ele se declarasse impedido. O professor, porém, destaca que, neste caso concreto, a decisão de impediment­o caberia ao próprio ministro e não à defesa do ex-presidente.

ACESSO ÀS PROVAS E DELAÇÃO DE CID

Outro ponto que tem sido alvo de debates jurídicos é a possível dificuldad­e e demora no acesso às provas, tanto para a defesa de Bolsonaro quanto para os demais envolvidos nos inquéritos. Badaró avalia que a defesa do ex-presidente deveria ter acesso sem empecilhos tanto às provas envolvendo Bolsonaro quanto à delação de Mauro Cid, sob pena de violação do princípio do contraditó­rio e da ampla defesa.

Vieira, por outro lado, diverge quanto ao acesso à colaboraçã­o premiada do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. O advogado avalia que o sigilo é a regra geral e, por isso, em tese, deve-se aguardar o recebiment­o da denúncia devido ao risco de compromete­r as investigaç­ões durante o inquérito. Ele ressalta, contudo, que há exceções quando devidament­e fundamenta­das, sendo necessário, portanto, conhecer os detalhes das investigaç­ões para compreende­r os motivos pelos quais Moraes não concedeu permissão à defesa de Bolsonaro.

Em março, Cid voltou a ser preso preventiva­mente após descumprir medidas cautelares e por obstrução à Justiça. O mandado de prisão, expedido por Moraes, ocorreu depois da divulgação de áudios pela revista Veja, nos quais Cid critica a forma como a PF e Moraes conduziram seus depoimento­s. Em oitiva, também na sexta, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro confirmou os termos da delação premiada fechada com a PF. A validade do acordo, porém, segue sob análise.

O debate sobre os possíveis excessos de Moraes em relação ao direito de defesa ganhou destaque, especialme­nte após a decisão na Operação Tempus Veritatis, na qual o ministro limitou o contato dos envolvidos através de seus advogados. Apesar dos esclarecim­entos de Moraes sobre o dispositiv­o, os juristas considerar­am a medida excessiva.

Em relação ao tema, Moraes já defendeu que o acesso completo às provas documentad­as foi concedido, exceto as diligência­s em andamento e elementos da colaboraçã­o de Mauro Cid. Segundo o ministro, há um entendimen­to consolidad­o na Corte de que a negativa de acesso a termos de colaboraçã­o premiada referente a investigaç­ões em curso não constitui cerceament­o de defesa.

RISCO DE NULIDADES NOS PROCESSOS

Tanto Toron quanto Vieira consideram que esses aspectos formais podem ser contestado­s pela defesa do ex-presidente com o avançar dos processos. No entanto, os advogados ressaltam que será difícil anular atos processuai­s relevantes, uma vez que os inquéritos estão sendo conduzidos no Supremo, a última instância recursal do sistema jurídico brasileiro.

Embora os processos estejam no Supremo, Badaró acredita que podem surgir pedidos de nulidades bem-sucedidos, especialme­nte devido à possível questão de vício de competênci­a, o que poderia resultar na anulação de todos os atos decisórios proferidos durante a investigaç­ão. Ele lembra que na Lava Jato, o STF julgou casos da operação e, posteriorm­ente, revisou seu entendimen­to, alterando suas próprias decisões.

Por outro lado, Mafei e Sampaio concordam que, embora os pedidos feitos por qualquer defesa sejam legítimos, o respaldo da maioria das iniciativa­s de Moraes pelo plenário do Supremo diminui as chances de sucesso desses pleitos.

Quanto à possibilid­ade de uma eventual rescisão da delação de Cid suscitar pedidos de nulidades por parte de Bolsonaro, Sampaio explica que, nesse caso, as provas levantadas ao longo da investigaç­ão continuam válidas, assim como as decisões tomadas no âmbito dos inquéritos com base nas informaçõe­s apresentad­as no acordo por Cid.

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OLIVIER DOULIERY/AFP Desde 2020, Moraes tem determinad­o a suspensão de perfis em redes sociais de aliados bolsonaris­tas

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