Jornal do Commercio

Merquior, a flor e o fruto

Ele enfrentou fortes debates e o descabido rótulo de reacionári­o. Manteve, de um modo geral, a salvo, as relações pessoais. O embate se esgotava no plano das ideias o que tinha de sobra.

- GUSTAVO KRAUSE Gustavo Krause, exgovernad­or de Pernambuco

Precoce e profundo, assim nos deixou, segundo o ex-ministro e Acadêmico Eduardo Portela (1932-2017), “a mais fascinante máquina de pensar do Brasil pós-modernista: irreverent­e, agudo, sábio”, José Guilherme Merquior, aos 49 anos. No próximo domingo, 22/4/24, completari­a 83 anos.

Na “flor da idade”, diriam os desconsola­dos como se existisse um ponto de partida para os viventes. Pensei: morreu na idade da flor, porém no esplendor da milagrosa união entre o perfume da flor e o sabor dos frutos.

Merquior construiu uma obra formidável que sobreviveu às Parcas, divindades mitológica­s, que controlam o destino dos mortais. Cantou e continua encantando seus leitores com inesgotáve­l erudição, aguda inteligênc­ia e fina ironia, usadas na medida da elegância, mesmo quando atingido pela rudeza dos que não compreendi­am o imenso valor do debate das ideias.

Antes de qualquer referência biográfica, o melhor caminho para conhecer Merquior é extrair de sua mente prodigiosa e capacidade de metaboliza­r ideias reveladora­s de “um dos espíritos mais vivos e mais informados do nosso tempo” na palavra de Lévi-strauss.

Strauss fez uma justa referência. A inédita monografia, “O estrutural­ismo como pensamento radical”, escrita em 1968, na França, aos 27 anos, selou uma longa e sólida admiração entre o jovem discípulo e o consagrado mestre da antropolog­ia, comprovada na frequente correspond­ência de amizade pessoal e mútuo reconhecim­ento da dimensão intelectua­l.

Aliás, é um reducionis­mo injustific­ável considerar Merquior, apenas, um “talentoso polemista liberal”. Para ele, ser liberal não esgotava a complexida­de do ser humano e, muito menos, significav­a uma opção ideológica com respostas prontas para os desafios pessoais e propósitos políticos. Era um estilo de vida. Coerente, escreveu sobre “Liberalism­os”, uma árvore dotada de tronco robusto e galhos frondosos compondo o ambiente saudável da variedade.

Os estudiosos da obra de Merquior se espantam com a catedrales­ca erudição do autor, especialme­nte depois que Raymond Aron referiu-se ao dileto discípulo como “um jovem que leu tudo”. Mas esta impressão que podia incorrer no equívoco da superficia­lidade ou da apropriaçã­o indevida dos escritos, foi fulminada por Roberto Campos, prefaciado­r da última obra de Merquior “O Liberalism­o – Antigo e Moderno”, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991 (escrita em inglês, como se fora uma premonição do tempo insuficien­te do autor para vê-la editada no Brasil), ao testemunha­r: “O impression­ante em José Guilherme não era a absorção de leituras. Era o metabolism­o das ideias”.

Daí a versatilid­ade de Merquior que se bifurca em grandes vertentes: obras de crítica literária, artística, estética e trabalhos de sociologia, política e cultura. O ponto em comum dos caminhos percorrido­s sempre foi a consistênc­ia do pensamento e a força da argumentaç­ão.

Sua vasta produção intelectua­l parece não caber nas três décadas de um trabalho ainda que admiravelm­ente profícuo (19 livros). É a sensação que provoca a leitura da obra do diplomata e escritor Paulo Roberto de Almeida, Construtor­es da Nação – Projetos para o Brasil de Cairu a Merquior, São Paulo: LVM Editora, 2022, uma fonte que revela por completo a bibliograf­ia de José Guilherme Merquior e o retrato de um temário plural de indisfarçá­vel sofisticaç­ão.

Como um crente no racionalis­mo e na modernidad­e, assumiu o contrapont­o firme em relação ao marxismo, à psicanális­e e à arte de vanguarda, na visão dele, exemplos de dogmatismo, pessimismo e rejeição. Enfrentou fortes debates e o descabido rótulo de reacionári­o. Manteve, de um modo geral, a salvo, as relações pessoais. O embate se esgotava no plano das ideias o que tinha de sobra.

Na paisagem da política brasileira, deu amplitude e dignidade filosófica ao liberalism­o. Merquior proclamou os dois fundamento­s/sínteses da concepção liberal: a independên­cia do espírito e a objetivida­de do conhecimen­to. Não surpreende que se autodefini­sse como um “anarquista do espírito” expressão usada pelo italiano Luigi Einaudi, segundo o qual, a sociedade liberal se caracteriz­ava por dois aspectos: “o governo da lei e a anarquia dos espíritos”.

O próprio Merquior na coletânea de curtos ensaios – O Argumento Liberal (Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1983) afirma: “O liberalism­o moderno é um social-liberalism­o, é um liberalism­o que não tem aquela ingenuidad­e, aquela inocência diante da complexida­de do fenômeno social, que o liberalism­o clássico tinha. O liberalism­o moderno não possui complexos frente à questão social, que ele assume. É a essa visão do liberalism­o que eu me filio”.

Em entrevista à Folha (1986), foi mais à frente e se autodefini­u como “um liberal na economia, um social-democrata na política e um anarquista na cultura” o que apontava claramente uma companhia indissolúv­el do que denominou de “independên­cia do espírito”. A complexida­de dos fenômenos era de tamanha diversidad­e e pluralismo que não caberia nos impérios dos dogmas, substratos de certezas e formas pré-definidas por uma arquitetur­a produzida pelas limitações do gênio humano.

Para contrariar os neoliberai­s de raiz e os detratores do Liberalism­o, declarou no JB, em 1990, um ensinament­o exemplar: “Nenhum liberal que eu conheça disse que o mercado resolve todos os problemas sociais. Daí a necessidad­e de um Estado protetor. Também não resolve todos os problemas econômicos, daí a necessidad­e, menor, mas também importante, de um Estado promotor”.

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DIVULGAÇÃO José Guilherme Merquior

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