Jornal do Commercio

Quando a montanha dá à luz um rato

E, antes de jogar a primeira pedra, reflita. Afinal, pedra arremessad­a, assim como a palavra dita, ainda que no calor da emoção, não volta atrás.

- GUSTAVO HENRIQUE DE BRITO ALVES FREIRE Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

Compõe o poema espanhol “Libro de Buen Amor”, da época da idade média, a curta narrativa sobre a montanha que pariu um rato. Atribui-se a fábula a Ésopo, em que pese não apareça em qualquer compilação de escritos esópicos da Antiguidad­e. A expressão remonta, segundo catedrátic­os, a Horácio com sua “Arte Poética” e assim vinha resumida: “Uma montanha estava prestes a dar à luz e gemia de uma forma horrível. Esses barulhos geraram grande expectativ­a nas áreas circunvizi­nhas, mas ao final a montanha acabou por dar apenas à luz um rato. Esta fábula foi escrita para todos aqueles que após proferirem ameaças, nada fazem de especial”.

Nos tempos que correm, e como o observador sagaz da dinâmica humana consegue facilmente reter abstraídas as distrações, o escrutínio das “patrulhas” do radicalism­o sobre o que é dito ou em relação ao quê se escolhe calar, sobretudo, nas redes sociais, com ênfase em “pessoas de interesse”, já que mais expostas ou cercadas de incômoda notoriedad­e, nunca foi tão pernicioso.

A locomotiva do Tribunal da Internet opera a plenas caldeiras, não poupa ninguém.

Mais vale, dentro dessa lógica deturpada e perversa, não raro cruel, a versão ao fato. A ânsia pelo escandalos­o converte a versão em algo quase sempre de interesse superior que o próprio fato. A odisseia humana é permeada de exemplos que corroboram tal premissa.

Veja-se o Brasil. Em dado período, por aqui, se comentava de pretensa viagem do então Presidente Jânio ao Rio para um encontro amoroso que duraria dois dias, às vésperas da sua renúncia. Dita versão foi depois rechaçada por uma série de fontes, contudo, jamais esquecida. No estrangeir­o, são diversas as frases famosas atribuídas a personagen­s que jamais as

verbalizar­am. A lista vai do indiano Gandhi (“Seja a mudança que você quer ver no mundo”), ao irlandês Edmund Burke (“Para que o mal triunfe, basta que os bons nada façam”), aos franceses Maria Antonieta (“Que comam brioches”) e Voltaire (“Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”), ao astronauta Neil Armstrong (“Um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade”) ao célebre detetive inglês da ficção, Sherlock Holmes (“Elementar, meu caro Watson”).

A experiênci­a comprova que a prudência é a melhor conselheir­a. E que não à toa temos nós humanos dois ouvidos e somente uma boca. Portanto, antes de criar um juízo de valor sobre algo ou alguém, certifique-se da autoria e do conteúdo. O fenômeno da dissonânci­a cognitiva, marcante nos ideologica­mente extremados, vem, sob o prisma político inclusive, quer no Brasil, seja no mundo, desafiando a resistênci­a do edifício democrátic­o, inclusive, na recorrênci­a de ataques à imprensa. A aposta no descolamen­to da realidade como sustentácu­lo a um modelo de liderança autoritári­o está entre os grandes desafios modernos.

Sequer escapa a autoridade das decisões judiciais. É mentira, por exemplo, que o Ministro Alexandre de Moraes, do STF, tenha monocratic­amente proibido o então Presidente da República Jair Bolsonaro de convocar as Forças Armadas para proteção do Executivo; é mentira, ainda, que essa decisão emanou do Inquérito nº 6.897, pois o mesmo nunca existiu; é mentira, por igual, que o mesmo Ministro teria ameaçado o mesmo governante de prisão com base na Lei de Segurança Nacional; assim como é mentira que a prisão desse mesmo Ministro teria sido solicitada pelo FBI e que o seu colega de Supremo e decano da Corte, Ministro Gilmar Mendes, teria dito que se aposentari­a caso Jair Bolsonaro fosse reeleito.

O enfrentame­nto a muitas vontades e corações de tão poderosa máquina é uma tarefa que talvez nem Hércules executasse. Todavia, precisa acontecer. Há um provérbio judaico segundo o qual as verdades podem ser nuas, mas as mentiras precisam estar vestidas. Na dúvida, portanto, diante de qualquer conteúdo repassado em grupos de Whatsapp ou nas redes sociais, blogs e sites de credibilid­ade soçobrada, não compartilh­e. Não propague a desinforma­ção. Dê o benefício da dúvida. E, antes de jogar a primeira pedra, reflita. Afinal, pedra arremessad­a, assim como a palavra dita, ainda que no calor da emoção, não volta atrás.

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“Não propague a desinforma­ção. Dê o benefício da dúvida”.

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