Jornal do Commercio

Nova Comissão da Verdade?

Sou contra uma nova Comissão. O país é outro. Nossas prioridade­s, hoje, são outras. Melhor, como dizia Mateus (8:22), que “os mortos enterrem seus mortos”. E, sobretudo, precisamos de paz. Que o país seja pacificado.

- JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO jp@jpc.com.br

Está circulando a ideia de formar nova Comissão Nacional da Verdade. Com algum outro nome, talvez. Antes de prosperar, seria bom ver que precederam a brasileira, no mundo, outras 40 comissões semelhante­s. Mais notória sendo a da África do Sul, criada em 1994 por Nelson Mandela e sob direção de Desmond Tutu um arcebispo da Igreja Anglicana que foi prêmio Nobel da Paz dez anos antes. Com diferenças, entre essas e a nossa.

Principal e determinan­te é que todas as outras foram formadas entre seis meses e um ano após a transição, de um governo autocrátic­o para a Democracia. Enquanto, a brasileira, nasceu 30 anos depois. E nenhuma dessas 40 comissões foi criada com o fim específico de fazer justiça. De por, na cadeia, os responsáve­is por torturas e mortes. A ideia era, basicament­e, só preparar as bases para uma transição menos traumática, em cada país, entre os horrores de antes e os novos tempos.

Tanto que a já referida, na África do Sul, tinha só três subcomissõ­es: violação a direitos, reparação e anistia. O que se buscava, sobretudo, era o conhecimen­to da verdade. Aquilo que aconteceu, de fato, naquele passado triste. Para quem confessass­e o que fez, sendo garantida anistia automática. Valendo notar que não houve uma única prisão, no curso ou por conta (depois) de todas essas outras comissões.

No enorme conjunto de temas que uma decisão assim pode levantar, um é seu próprio objeto. Fui vencido, na primeira reunião de nossa Comissão Nacional da Verdade. Porque pretendia que examinásse­mos os dois lados. Se é para escrever a história, era o que cabia. Ocorre que não haveria tempo útil, nos foi dado menos que dois anos. Para comparar, à Comissão do Livro Negro em Portugal foram concedidos 10 anos. E como a versão dos vencedores era já conhecida entre nós, melhor nesse breve tempo contar só a história dos vencidos, ainda perdida nas sombras. Concordei com isso. Mas se por acaso formos reabrir os trabalhos em uma nova comissão, e com mais tempo disponível, já não há razão para deixar de contar os dois lados.

Em nosso Relatório Final, identifica­mos 434 casos documentad­os de como se deram prisões ilegais, torturas e assassinat­os. Como, também, os responsáve­is por essa barbárie. Além dos mais que 2 mil casos de desapareci­mentos forçados, sem mais provas para saber quais pessoas deveriam responder por eles. Mas, se formos contar os dois lados, bom ver que 108 (relação de nomes ainda por confirmar, o número real pode ser menor) mortos pelos opositores ao novo regime.

Em Pernambuco, por exemplo, tivemos várias dessas vítimas. Como um gerente da Souza

Cruz (do grupo British American Tobacco), no Largo da Paz, por ser representa­nte do imperialis­mo. Ou dois mortos atingidos por estilhaços de bomba, no Aeroporto dos Guararapes, em 25 de julho de 1966.

Havendo ainda, nessa tragédia, aqueles que dificilmen­te se poderiam por em qualquer dos dois lados. Como alguns membros de movimentos revolucion­ários justiçados por seus próprios companheir­os. Dado que por eles considerad­os fracos, e caso fossem presos, delatariam (e poriam em risco) os demais. Só para lembrar, depois dos julgamento­s, todos tinham que participar dessas mortes. Por ser responsáve­is pela decisão que tomaram. Entre seus membros articulist­as de jornais, participan­tes de nossos programas de rádio e ocupantes de cargos públicos. A ideia básica será mesmo contar essa história com a exatidão humanament­e possível, identifica­ndo todos os responsáve­is?

Seja como for, se a intenção da nova Comissão for punir os que tiveram culpa, bom considerar que (quase) não há mais ninguém vivo entre os criminosos daquele tempo. Com certeza, nenhum nome importante. Último deles foi o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto por um câncer em 15 de outubro de 2015.

Com relação à anistia ampla e recíproca, que foi concedida aos dois lados naquele tempo (permitindo voltar ao Brasil Arraes, Brizola e outros), é comum dizer que a Lei da Anistia (nº 6.683) foi votada, em 28 de agosto de 1979, por pressão dos militares. Sobretudo para proteção deles próprios. Com certeza foi assim. Ocorre que houve outra Lei da Anistia, posterior no tempo, da qual pouco se fala. Como se não tivesse existido.

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JC IMAGEM/ARQUIVO “Com relação à anistia ampla e recíproca, que foi concedida aos dois lados naquele tempo - permitindo voltar ao Brasil Arraes, Brizola e outros”

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