Um bonde chamado poder
O único candidato no mundo que se elegeu sem uso do dinheiro do contribuinte foi o chimpanzé Tião. Obteve 400 mil votos em 1988. No mais, o que prevalece é a retórica institucional. Muitos correm, atropelam, pisam, empurram e trucidam. Querem espaço no mesmo bonde: um bonde chamado poder.
DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
Recebi um vídeo pelo Whatsapp. Nele uma mulher traga um cigarro e sopra toda a fumaça no rosto de uma criança de mais ou menos um ano. Na sequência, empurra o cigarro nos lábios da menina para que ela também possa pitar. A garota se agita e soluça na tentativa de semanumitirdocigarro.mas a mulher é célere no açoite. Os gestos violentos ou agressivos voltam a se repetir compondo um ritual macabro.
Lembrei-me da obra “a besta humana” escrita por Émile Zola. Narra a história de Jacques Lantier, o ferroviário que trava uma guerra interior para alterar a genética dos seus instintos. Entre a genialidade de Zola e a conduta da “mãe indigna” existe um ponto de encontro: o comportamento patológico do homem com suas torpezas, desejos e taras. O caminho da crueldade pode ser revertido?
A história humana – da animalidade à globalização, da pirataria dos mares à pirataria digital, da invenção da linguagem às origens da religião, do florescer das primeiras cidades, do iluminismo ao despotismo esclarecido, da formação ou estruturação da família à deterioração desse grupo - revela que, liberto da amargura paralisante do tempo e das circunstâncias da vida, o homem poderia optar, num futuro ainda remoto, pelo caminho da responsabilidade moral, da fé e da busca da justiça. Todavia, no estádio atual de “war junkie” (vício em guerra), o frenesi da liberdade e o dobrar dos sinos da paz ainda estão muito além.
Qual seria o princípio que permite o trânsito entre o incompreendido e o incompreensível? A resposta não prescinde do exemplo. Poderia selecionar, aleatoriamente e sem tintas ideológicas o julgamento no STE do senador Sérgio Mouro - o homem que é considerado um compósito de sagrado, perfeitoediabólico,quetudo sabe e adivinha, modalidade de “prégo-diablé” com as suas variantes geográficas (ver Roger Caillois). É mesmo uma modalidade de louva-a-deus chinês: exposto numa gaiola de bambu para que as pessoas possam acompanhar os seus debates, querelas e rixas. Faz recordar a história escutada em Portugal: Satanás tinha uma filha com raro encanto e maldade. Irritado com a possibilidade de insucesso na disputa de iniquidades, Lúcifer demuda a filha em religiosa. Deus, atento às manhas do diabo, impede a conversão e a moça adquire o formato de louva-a-deus.
Essa percepção esteve presente nas primeiras páginas da mídia revelando a verdadeira retórica judicial no STE. E é nela que me concentro. Pode ser dividida entre os magistrados que acolheram a ideia de abuso de poder econômico de Moro e entre aqueles que rejeitaram tal juízo alegando que os gastos financeiros efetivados pelo acusado estavam na “média”. Qual o pensamento da “maioria”? Ousamos distinguir a expressão “maioria” da palavra “todo”. Nesse aspecto, mesmo com deslustre ou nódoa do texto, transcrevo um anúncio inexistente citado por Humberto Eco na obra “A passo de caranguejo”: “Comam merda, os milhões de moscas queofazemnãopodemestar enganadas”. Todavia, nem somos insetos, não nos alimentamos de excrementos e não acreditamos em unanimidade, daí a existência da palavra “maioria” que torna mais factível a aceitação da ideia de que a democracia, com a existência de certas regras exasperantes, pode ser pouco ou nada democrática.
O raciocínio de que Moro não ultrapassou a “média” dos gastos parece simplista. Será que todos os concorrentes foram virtuosos ou probos na declaração de dispêndios? Afinal, os algarismos num pleito dificilmente são congruentes. Calcularam entre R$225 mil a R$7 e 21 milhões os gastos efetivados pelo senador. Qual seria o valor correto? Aqueles que gostam de exercitar a retórica epidicta (das ruas) afirmam que Moro está sendo punido por equívocos na Lava Jato. Convém lembrar que o CNJ decidiu afastar um grupo de magistrados, entre eles a juíza Gabriela Hardt, ex- substituta de Moro, um dia antes da sessão do Conselho sob o argumento de que era indispensável proteger a ordem pública e estagnar a conduta infracional que maculou a imagem do Judiciário e violou princípios fundantes da República. Por que consumiram tanto tempo para essas conclusões? É bom lembrar que o Brasil vem carcomendo, com glutonia, a autoridade do Poder Judiciário. Num país sucateado por sérios problemas de educação, segurança, saúde, carnificinas, injustiças flagrantes, morte lenta pelo uso de agrotóxicos para acelerar o desmatamento na Amazônia... desenterrar questões antigas do governo petista parece uma infeliz cabeçada. Afinal, não é preciso abrir tantas feridas sem alguma certeza de que as atuais foram produzidas por má-fé, dolo ou armadilha. Precisamos crer em nossos juízes e em nossa Justiça.
Enfim, não é fácil entender o significado da palavra pecado e iniquidade no universo dos Três Poderes. Mas o povo conhece, com desenvoltura, a diferença entre soberba e genialidade, perseguição e inteligência. Sabe, afinal, que inexiste santidade na maioria dos homens públicos. O único candidato no mundo que se elegeu sem uso do dinheiro do contribuinte foi o chimpanzé Tião. Obteve 400 mil votos em 1988. No mais, o que prevalece é a retórica institucional. Muitos correm, atropelam, pisam, empurram e trucidam. Querem espaço no mesmo bonde: um bonde chamado poder.