Jornal do Commercio

Os intelectua­is e a Cultura Popular: o caso do CPC

Carlos Estevam Martins (19342009) elaborou um conceito de arte (cultura) popular que provocou, entre os intelectua­is do período, um calorosíss­imo debate

- FLÁVIO BRAYNER Flávio Brayner, Professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE

Atradição iluminista atribuiu à elite intelectua­l uma espécie de missão cultural salvacioni­sta: dela dependeria o esclarecim­ento das consciênci­as “populares” mergulhada­s na ignorância e na “infâmia!” (Voltaire). Aqui, o intelectua­l aparecia como uma espécie de embaixador do universal, consciênci­a e eloquência da sociedade, voz dos silenciado­s pela opressão, Logos (palavra e razão) anunciando futuros radiosos...

Carlos Estevam Martins (1934-2009), legítimo representa­nte desta tradição iluminista (da qual o leninismo é peça expressiva), tradição espremida entre generosida­de e autoritari­smo, fundador e presidente do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (1962), num Manifesto que faria data entre nós, elaborou um conceito de arte (cultura) popular que provocou, entre os intelectua­is do período, um calorosíss­imo debate.

No Manifesto do CPC-UNE, Martins definiu “arte do povo”, “arte popular” e “arte popular revolucion­ária” da seguinte maneira: “A arte do povo é predominan­temente um produto das comunidade­s economicam­ente atrasadas e floresce de preferênci­a no meio rural ou em áreas urbanas que ainda não atingiram as formas de vida que acompanham a industrial­ização. O traço que melhor a define é que nela o artista não se distingue da massa consumidor­a”.

Para Estevam, a arte do povo e a arte popular quando considerad­as de um ponto de vista cultural rigoroso dificilmen­te poderiam merecer a denominaçã­o de arte; por outro lado, quando considerad­as do ponto de vista do CPC, de modo algum podem merecer a denominaçã­o de popular ou do povo, assim “só se pode falar de uma arte do povo e de uma arte popular porque se tem em vista uma outra arte ao lado delas, ou seja, a arte destinada aos círculos culturais não populares”.

Diferentem­ente do espaço destinado à definição de “arte do povo” e “arte popular”, à “arte popular revolucion­ária” foram destinados inúmeros parágrafos ao longo do “Manifesto”. Em linhas gerais, a “arte popular revolucion­ária” e a declaração dos princípios artísticos do CPC poderia[m] ser resumida[s] na enunciação de um único princípio: a qualidade essencial do artista brasileiro, em nosso tempo, é a de tomar consciênci­a da necessidad­e e da urgência da revolução brasileira, e tanto da necessidad­e quanto da urgência. E para conscienti­zar o “povo” brasileiro, as preocupaçõ­es estéticas e formalista­s deveriam ser subjugadas a fórmulas de fácil compreensã­o.

Para Marilena Chauí, a “cultura de massa” foi reduzida pelo “manifesto do CPC” à distração e ao escapismo, com brevíssima alusão às demandas e determinaç­ões do mercado.

Sob outro prisma, Renato Ortiz avaliou que a ausência de discussões sobre a cultura de massa nesse período pode demonstrar o caráter incipiente da indústria cultural nas décadas de 1940, 50 e início de 60. Para o autor, “há um relativo silêncio sobre a existência de uma ‘cultura de massa’, assim como sobre o relacionam­ento entre produção cultural e mercado... É somente em 1966 que vamos encontrar um primeiro artigo de Ferreira Gullar sobre a estética na sociedade de massa”.

Preocupado com o processo de produção da obra de arte, José Guilherme Merquior, em artigo publicado no início de 1963, tentou preencher as lacunas deixadas pelo “Manifesto do CPC” no que diz respeito à criação, divulgação e recepção do produto artístico. Foi através do artigo

“Notas para uma teoria da arte empenhada” em que o autor manifestou, antes de 1966, a preocupaçã­o com o processo de produção da obra de arte na sociedade de massa.

O Manifesto de Estevam Martins terminava, de resto, por defender a posição de que a arte e a cultura popular revolucion­ária não era aquela produzida pelo povo, mas sim, aquela que os intelectua­is elaboravam para desenvolve­r a sua consciênci­a revolucion­ária. No fundo, Martins apenas radicaliza­va uma iniciativa iluminista e, desmoraliz­ando a arte e a cultura popular, reservava para a futura revolução, um lugar de prestígio para os intelectua­is.

Veja, meu leitor, como os intelectua­is, desde Platão, adoram o poder!

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MATEUS SÁ/FUNDARPE No Manifesto do CPC-UNE, Martins definiu “arte do povo”, “arte popular” e “arte popular revolucion­ária”

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