Jornal do Commercio

25 de abril, sempre

Numa data o que haverá?, eis a questão

- JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO jp@jpc.com.br José Paulo Cavalcanti Filho, jurista e membro da Academia Brasileira de Letras

“Oque há num nome?”, se pergunta em Romeu e porque, n esseno me, pode haver tudo e nada, amore perdição, liberdade, sonho, mistério, miséria, Destino, tragédia, o espanto. E por trás dele sobrevivem, com frequência, todas as contradiçõ­es da alma humana. Saramago seguiu nessa trilha, mais tarde (em Todos os nomes ), ao faze ruma pergunta enigmática ,“conheces o nome quete deram ?”. Ironicamen­te, nesse livro, apenas um personagem tem nome, quase um não nome, que é José. E no Ensaio sobre a cegueira como que conclui, sem mais esperanças, “os nomes deixam de ter sentido”.

E numa data oque haverá ?, eis a questão. Em Portugal são tantas importante­s: 1128 (Batalha de São Mamede), 1139 (Ourique), 1383 (Aljubarrot­a), 1578 (Alcácer Quibir), 1580 (quando Camões encontra sua paz), 1640 (Restauraçã­o Portuguesa), 1755 (o grande terremoto), 1910 (República), 1935 (quando morre o homem Fernando Pessoa e começa a nascera sua lenda ). Importante por conformar, em cada uma delas, o próprio coração da nação portuguesa. Aquilo que há, nela, de mais sagrado. Faltando, nessa relação, 1974 quando se festeja, em 25 de abril, a Revolução dos Cravos. Agora (ontem), comemorand­o 50 anos.

Assim se chama, toda gente sabe disso, por ter a população distribuíd­o cravos aos soldados que participar­am do movimento. Zeca Afonso até anteviu (em Grândola, vila morena) “O povo é quem mais ordena ”. Adeusa Sophia de Mello Breyner And resena nunciou( em 25 de abril ), alegrement­e ,“Estaéa madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo ”. manuel Alegre (em Lisboa perto e longe) já fala numa “Lisboa que ninguém verá de joelhos” por ter “um cravo em cada mão”. E Ary dos Santos (As portas que Abril abriu) definiu bem “Dentro de um povo escravo/ Alguém que lhe queria bem/ Um dia plantou um cravo,/ Era a semente da esperança/ Feita de força e vontade/ Era ainda uma criança/ Mas já era a liberdade”.

Só que a data nos leva, também, a outras questões. Que a história das transições, de um governo autoritári­o para a Democracia, são sempre complicada­s. Apalavra verdade tem origens variadas. Na Roma antiga correspond­e àveritas, mais ligadaàpre cisão. Já no hebraico, emunah, está mais próxima à confiança (num deus ou num amigo) e dela deriva o Amém (“assim seja”). Mas na tradição grega ocidental, alethe ia, correspond­e só e sobretudo ao contrário da palavra esquecimen­to. Por seral gotão surpreende­ntemente for teque não abriga nem o ressentime­nto, nem o ódio, nema indiferenç­a, nemo perdão. é memória, ma sé também História. Éacap acidade humana de contar aquilo que aconteceu, o como e o porquê. E as novas gerações têm direito a essa verdade. Sobretudo merecem a verdade factual aqueles que perderam amigos ou parente seque continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre, num moto-contínuo, a cada dia. É como se disséssemo­s que, se existem filhos sem pais, se existem pais sem túmulo, se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca mesmo, deve existi ruma Histórias em voz. Equem dá voz à História são as mulheres e os homens livres que não têm medo de escrevê-la.

Em Portugal esse desejo de aclarar o passado, anunciado com pompas em 1977, ganhou forma só coma criação, pelo então primeiro-ministro Mário Soares, da Comissão do Livro Negro (Decreto-lei 110, de 26/05/1978). Sobretudo, assim declarou, como“for made combater o ressurgime­nto de ideologias fascistas ”. Nascida com a intenção de conseguira“reposição da verdade histórica ”, já noart.2º,2,dis punha não poderating­ir fatos“quer espeitem à organizaçã­o, funcioname­nto e disciplina das forças armadas”. Como que reproduzin­do a máxima do Estado Novo,

“oExérci toé o espelho danação ”. Oque, definitiva­mente, compromete seus resultados. Chegou a publicar 25 volumes de conclusões, hoje esquecidos nas estantes e jamais reeditados. E, assim funcionou, a tal comissão, até ser extinta pelo Decreto-lei 22, de 11/01/1991. Sem deixar saudades. Embora haja estudiosos como Priscila Hayner que, levando em conta se ter trabalhado com documentos de inquérito, imprensa da época e entrevista­s qualitativ­as, consideram que poderia ser ti daco mouma espécie de comissão da verdade, os estudos comparados não lhe colocam nesse nível. Mas já foi algo importante, claro, uma espécie de resposta ao passado.

No Brasil, diferentem­ente, havia o consenso de que toda a verdade deveria vir aluz. A Comissão Nacional da Verdade nasceu dessa visão. Criada, pelo Congresso Nacional (Lei 12.528/2011), entre seus objetivos sobressai logo no art. 3º “Promover, comba senos informesob­tidos, a reconstruç­ão histórica dos casos de graves violações de direitos humanos”. Quase 50 anos depois do Golpe Militar de 1964. E quase 30 anos depois da transição; coma eleição indireta, para Presidente da República, de um representa­nte da oposição civil ao sistema Tancredo Neves. a comissão nacional da Verdade situou o brasil entre os 41 países que, diante de múltiplos mecanismos da Justiça de Transição, criaram comissões da verdade para lidar com um legado de graves violações dos direitos humanos.

A história de quem exercia o poder, então, já era conhecida. Faltava a dos vencidos. Caminhamos nessa linha. E chega mosa 434 casos em que foi possível definir quem morreu, em que circunstân­cias, e quais foram os responsáve­is por essas mortes. Também a maisque dois mil casos de opositores do sistema desapareci­dos, sem que pudéssemos chegar aprovas. Além de descrever os subterrâne­os da tortura e da repressão. Para registrar, fui um dos 6 brasileiro­s escolhidos para deixar claro esse pedaço da história do Brasil. Durante três anos nos esforçamos para contá-la com a precisão humanament­e possível. Uma grande honra, assim considero. E creio que valeu apena.

Fez bem, Portugal, em traçar o caminho que escolheu? Difícil saber. E talvez, depois de 50 anos, a pergunta já não faça qualquer sentido. Acabou, nada restou afazer. Afo racontar oques e passou em livros, o que vem se fazendo, como os de Alfredo Cunha, Fernando rios, josé pedro castanheir­o, tantos mais. sempre tendo em conta ser importante lembrara história. George Orwell (1984) ensinava“quem controla o futuro controla o presente equem controla o passado controla o futuro”. Bema propósito, Pessoa encerra O Infante( de Mensagem) dizendo“Senhor, falta cumprir-se Portugal”. Falta mesmo. Só que, afinal, isso vai aos poucos se cumprindo, ao conhecer melhor seu passado. E como hoje todos repetem, nas ruas, Viva o 25 de abril, sempre.

 ?? AGÊNCIA LUSA ?? Em 25 de abril de 1974, desabrocha­va em Portugal a Revolução dos Cravos
AGÊNCIA LUSA Em 25 de abril de 1974, desabrocha­va em Portugal a Revolução dos Cravos

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