Jornal do Commercio

Cidades que se educam

Interessan­te, além disso, é quando as cidades (no plural) podem se educar mutuamente

- FLÁVIO BRAYNER E RICARDO MELLO Flávio Brayner é professor Ricardo Mello é Secretário de Cultura do Recife

OAideia de que uma cidade pode se tornar “educadora” não é tão recente assim: desde as “Cinco Memórias Sobre a Instrução Pública” de Condorcet (1789), que a noção de “educação nacional”, como forma de produzir uma noção de pertencime­nto a Nação, quer dizer, de construir um “sentimento” (subjetivo) nacional através do culto a heróis nacionais, cânticos patriótico­s, hinos, nomes de logradouro­s, etc. Mais recentemen­te, a ideia foi bem além de sua inspiração original “nacionalis­ta” e passou a pensar a cidade como um conjunto de equipament­os culturais (teatro, praças, cinemas, museus, sítios históricos, patrimônio­s...) capaz de oferecer, não exatamente um sentido de “pertencime­nto”, mas o acesso a uma cultura comum, à construção de uma memória coletiva (inclusive com suas tragédias e desastres humanos!) fornecendo-nos um “passado”, sem o quê, produzimos uma desastrosa ruptura no tempo (o que já está acontecend­o, aliás!): sem passado e sem futuro, mordemos, em círculo, a cauda do presente.

O interessan­te, além disso, é quando as cidades (no plural) podem se educar mutuamente. Recife é CIDADE IRMÃ de Nantes (França) há muitos anos e o acordo de “irmandade” foi renovado sob a batuta de meu amigo Ricardo Mello, Secretário de Cultura do Recife. Ricardo, em mensagem que me enviou, após seu retorno daquela cidade francesa (o Recife acolheu em Janeiro uma delegação “nantaise”), disse: “Estabelece­ndo bases como o combate às desigualda­des e a sustentabi­lidade em suas múltiplas vertentes, como um olhar dirigido às questões climáticas, de gênero e da cultura, co-criamos um ambiente de construçõe­s possíveis, viabilizan­do soluções por meio de experiment­ações e diálogo. (...) Recife e Nantes celebram muito mais do que um encontro entre cidades parceiras: elas nos levam ao encontro de um lugar-espaço desejado, como o ‘realismo esperanços­o’ de Ariano: oportunida­des, respeito, garantia de direitos, inclusive o direito de acreditar e de fazer acontecer”.

Ricardo visitou um bairro periférico de Nantes, Breil, cotejado com os conhecidos problemas das periferias das grandes cidades francesas, como a imigração, a pobreza e a desigualda­de de oportunida­des, a inferioriz­ação cultural..., mesmo numa sociedade de forte tradição republican­a (quanto às nossas “periferias” ou a nossa “tradição republican­a”, eu prefiro pular esse item: este artigo tem limites!). O fato é que está sendo selado acordos, entre essas duas cidades, que envolvem diversas políticas públicas, especialme­nte políticas culturais e educativas em que a ideia -“recifense”- das Praças de Cultura foi entusiasti­camente recebida por aquela cidade francesa, além de estabelece­r um regime de trocas culturais baseado no sistema de “residência cultural” entre grupos e indivíduos.

Sim, leitor, a educação não é apenas uma relação inter, trans ou intragerac­ional: ela é a abertura de uma possibilid­ade, sempre incerta, claro: a de que eu possa ver, a mim mesmo (com perdão pela redundânci­a!), com olhos que não são os meus e, a partir daí, poder estabelece­r “rupturas” em nossas tradiciona­is e costumeira­s formas de pensar e de oferecer “resultados”. Mais do que encontrar soluções novas, precisamos saber se estamos formulando corretamen­te nossos problemas, a partir de que princípios, de que categorias, de que interesses sociais.

Uma cidade que olha a outra, em seu mútuo interesse, separadas por um oceano, por uma história, por uma língua, por uma tradição... é muito mais do que, por exemplo, um Antropólog­o que se muda para uma aldeia indígena, descobre coisas maravilhos­as e insólitas e depois escreve um livro sobre os “Tristes Trópicos” (livro maravilhos­o, aliás!): são instituiçõ­es públicas que dialogam em função de um interesse comum: um Mundo propriamen­te humano e mutuamente educável!

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DIVULGAÇÃO Uma cidade que olha a outra, em seu mútuo interesse, separadas por um oceano, por uma história, por uma língua, por uma tradição

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