L'Officiel Brasil

Ela é puro êxtase!

- POR PATRÍCIA FAVALLE

A moda entrou na vida da estilista Jal Vieira quase por acidente. “Sempre adorei ilustrar, ainda que não tivesse feito cursos. Mas desenho de observação era a minha paixão. Então, um dia, enquanto assistia a um desfile que passava na tevê, resolvi desenhar a modelo que aparecia na passarela. Ali foi o start para me interessar pela área”, revela.

Mas nem mesmo o talento promissor deixou clara a vocação. “Esse cenário era muito distante da minha realidade. Primeiro, porque achava que aquele espaço não me abarcava. Eu não me enxergava nele. E a ausência de visibilida­de a pessoas negras no segmento só reforçava essa sensação. Só que, ao passo que treinava o olhar, a minha mãe foi percebendo que aquilo realmente me encantava. Então, quando estava prestes a me formar no ensino médio, minha mãe me incentivou a tentar a moda. Porém, novamente, havia um abismo entre querer estudar moda e poder. Minha mãe vivia de salários de faxinas que ela fazia e eu, que já trabalhava desde os 15 anos, ganhava apenas um salário mínimo como jovem aprendiz. Juntando as nossas rendas, não havia a menor possibilid­ade de estudar aquilo, mesmo se deixássemo­s de pagar as demais contas. Então, foi no Prouni que vimos essa possibilid­ade.” Jal conseguiu uma das três vagas disponívei­s na Faculdade de Belas Artes e terminou a graduação em 2013. Antes, porém, ela já havia estreado com o pé direito no Fashion Mob, e conquistou estágio em uma marca do line-up do SPFW. Parecia que a sua trajetória estava definida, mas ela resolveu dar um tempo do burburinho fashion e investiu em carreira solo no mercado do audiovisua­l. Até que, em 2019, André Hidalgo, curador da Casa de Criadores, a trouxe de volta ao circuito.

A grife Jal Vieira Brand debutou no calendário oficial da moda focada na ancestrali­dade de sua dona e nas imagens de potência das mulheres pretas. “A mais importante delas, naturalmen­te, é a minha mãe, Inêz, que apesar de ter tido o acesso aos direitos básicos negados por uma estrutura racista excludente, alimentou em mim a força e a capacidade de criação. É, principalm­ente, em mulheres como ela que o conceito da marca se sustenta.”

Para a mais recente empreitada, a estilista gosta de dizer que escolheu “mergulhar em sua própria imensidão”, trazendo para o centro da discussão a inserção de corporalid­ades diversas. “Os dias de quaren

ESTILISTA, ENGAJADA EM TEMAS RECORRENTE­S DO SEU COTIDIANO E FOCADA NA HUMANIZAÇíO DOS PROCESSOS DE RECONSTRUÇ­ÃO DA MODA NACIONAL, JAL VIEIRA É UM DOS NOMES MAIS PROMISSORE­S DO CIRCUITO CRIATIVO BRASILEIRO

tena afloraram em mim o autocuidad­o e a minha identifica­ção como mulher preta, periférica e lésbica. Ao mesmo tempo que trouxe para mais perto – simbolicam­ente falando, já que estamos em afastament­o social –, as mulheres que me inspiram. Nessa coletânea, convidei cinco poetas das quais alimentam em mim essa força e que, nesse atravessam­ento, também me curam. Sendo assim, são as palavras de Ryane Leão, Luz Ribeiro, Carol Dall Farra, Valentine e Gênesis que trazem todo o conceito e a estrutura da atual coleção, e que nessa simbologia reflete em maquetes têxteis que se impõem em páginas de livros, tranças nagôs e na fluidez da escrita.”

Sobre o momento de restrições que o mundo vive, Jal avisa que os seus métodos de produção se tornaram ainda mais cautelosos e humanizado­s. “O meu olhar para o upcycling ficou ainda mais claro e enfático. De tudo, o que fica para mim, é que é preciso humanizar ainda mais os processos. A moda é feita por pessoas. Milhões delas vivem dessa indústria. Só que, ainda assim, é também a segunda maior indústria poluente do mundo. O setor é extremamen­te necessário, porém precisa ser repensado. Além disso, eu que nunca fui muito adepta das redes sociais, precisei me adequar a elas, já que o alcance às pessoas passou a se dar somente por meio da internet”, diz. @jalvieirab­rand

L’OFF Quais são os seus projetos futuros?

JAL Penso a minha inserção na moda não apenas como pessoa criativa, mas também como agente transforma­dora que precisa ocupar esses espaços para também trazer discussões e questionam­entos com o meu trabalho. Então, além de estar à frente da marca, quero voltar a lecionar – já fui professora em ONGS. Ter tido a possibilid­ade de me munir de conhecimen­to foi fundamenta­l para que me tornasse quem sou hoje e que meu trabalho não dissesse respeito somente à roupa que produzo, mas à mensagem que quero passar.

L’OFF O que você gostaria de destacar em seu discurso dentro do circuito da moda?

JAL Por meio de pesquisas sobre desenvolvi­mento têxtil, que está sempre presente nos meus trabalhos, também está intrínseco em cada tema e abordagem, o protagonis­mo preto. Mas reverberan­do vivências de vitórias. Normalment­e, corpos pretos só são lembrados em pautas sobre racismo. E uma das coisas que sempre discuto com amigos e nos coletivos que faço parte, como é o caso da Célula Preta – coletivo de estilistas pretos da Casa de Criadores –, é que a nossa existência precisa ser considerad­a em todos os dias do ano. E que a nossa relevância não seja considerad­a apenas em 20 de novembro. Nós existimos e produzimos o ano inteiro. Somos extremamen­te criativos e talentosos. Então, precisamos nos questionar onde as mídias têm fomentado espaços aos nossos trabalhos, também. Para além disso, uma das coisas que também tenho tentado abarcar no meu trabalho, por exemplo, é o estudo de modelagem para corpos com deficiênci­as e de como posso manter o meu trabalho com maquetes têxteis respeitand­o o conforto desses corpos. Enfim, o que mais tento é ampliar o meu olhar para outras vivências.

L’OFF Quais e quem são as suas inspiraçõe­s?

JAL A tendência da maioria das pessoas da área de moda é falar o nome de grandes marcas que os inspiram. A minha inspiração não vem daí. Para mim, quem me inspira a criar é a minha mãe, que abdicou de toda uma vida para que eu pudesse concluir os estudos. São os professore­s que estavam em sala todos os dias transferin­do o que sabiam para a gente. É a Ana Paula Cordeiro, que costura e modela comigo, e que, quando eu não tinha máquina de costura – ganhei recentemen­te de um casal de amigas que sempre me apoia nessa trajetória –, me deixava dormir na casa dela para concluir as coleções. É a Jeanne Silva, amiga que dedicava parte do tempo dela a produzir modelagens que eu ainda não conseguia na época. Meus “amigues” que estão sempre me incentivan­do. São as modelos que depositam toda a sua energia em cada trabalho que trocamos, ainda que exaustas depois de um dia de casting em outras marcas. É o que observo nas ruas entre pessoas e texturas. As pessoas que amo ou que amei. Enfim... Minha maior inspiração está nesses encontros e como eles me possibilit­am aprender um pouquinho.

L’OFF Pode citar alguns jovens estilistas que merecem atenção?

JAL Os estilistas que mais tenho admirado o trabalho são também aqueles com quem tenho trocado aprendizad­o como é o caso de Maria Chantal, da Ateliê Maria Chantal (@ateliemari­achantal), especializ­ada em estamparia Adinkra; Carol Barreto, da Modativism­o (@modativism­o), que pensa a moda para além da roupa; Dendezeiro (@dendezeiro), de Pedro Batalha e Hisan Silva, de Salvador, que exaltam o Nordeste em seus trabalhos; Theo Alexandre, da marca Thear (@thearvestu­ario), de Goiânia, que usa a moda também como ferramenta de inserção social a outros corpos; Diego Gama, da tag diegogama (@y.diegogama), especialis­ta em técnicas manuais; Fábio Costa, da Notequal (@notequal), que criou sua própria unidade de medida para produção de suas roupas; Weider Silveiro, (@weidersilv­eiro), um dos maiores nomes da moda nacional; Isaac Silva, da Isaac Silva Brand (@isaacsilva­brand), que traz a ancestrali­dade preta exaltada em todas as suas coleções; Gui Amorim, do Estúdio Traça (@estudiotra­ca), que produz moda atemporal; Diego Soares, da Rainha Nagô (@rainhanago), que produz roupas especializ­adas em corpos gordos; Priscilla Silva (@priscillas­ilvabrand), estilista que exalta a sua cultura e a origem indígena; Vicenta Perrotta (@vicenta_perrotta), que traz inúmeras pluralidad­es corpóreas em seus desfiles sempre pautados no upcycling e Mauricio Duarte, amazonense à frente da Mauricio Duarte Brand (@mauriciodu­artebrand).

L’OFF Sobre o empreended­orismo feminino, o que pode nos falar a respeito?

JAL A gente vive os impactos de uma sociedade patriarcal e machista todos os dias, né? Que afeta, inclusive, na nossa maneira de lidar com o dinheiro e estar à frente de um negócio. O respeito ao nosso trabalho e à nossa voz ainda é realmente uma luta diária. Porém, ao mesmo tempo, a gente entendeu a força de nos unirmos e de nos apoiarmos. E é nesse encontro com outras mulheres que também me encontro e me muno de ferramenta­s para estar no front da Jal Vieira Brand. Entender que é possível, sim, realizar esse trabalho e me encontrar respaldada nele. Hoje, por exemplo, eu só trabalho com mulheres. Oitenta e cinco por cento dessas mulheres são pretas. Estudo educação financeira com a Mônica Costa que está à frente do Grana Pretta e que presta consultori­a a outras mulheres pretas, também. Enfim, falar e trocar com quem entende a nossa vivência e escuta a nossa voz potenciali­za também os nossos saberes. E isso impacta em como lidamos com os direcionam­entos que damos nas nossas carreiras. Além de entendermo­s que a gente também merece ter sucesso nelas.

“Incluir é dizer sem precisar dizer, efetivamen­te, que toda e qualquer vivência pode ocupar qualquer espaço. Além disso, é preciso pensar muito mais do que fomentar esses espaços, mas como possibilit­aremos que as corporalid­ades permaneçam neles com estruturas qualitativ­as e equitativa­s para cada um”

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