Ela é puro êxtase!
A moda entrou na vida da estilista Jal Vieira quase por acidente. “Sempre adorei ilustrar, ainda que não tivesse feito cursos. Mas desenho de observação era a minha paixão. Então, um dia, enquanto assistia a um desfile que passava na tevê, resolvi desenhar a modelo que aparecia na passarela. Ali foi o start para me interessar pela área”, revela.
Mas nem mesmo o talento promissor deixou clara a vocação. “Esse cenário era muito distante da minha realidade. Primeiro, porque achava que aquele espaço não me abarcava. Eu não me enxergava nele. E a ausência de visibilidade a pessoas negras no segmento só reforçava essa sensação. Só que, ao passo que treinava o olhar, a minha mãe foi percebendo que aquilo realmente me encantava. Então, quando estava prestes a me formar no ensino médio, minha mãe me incentivou a tentar a moda. Porém, novamente, havia um abismo entre querer estudar moda e poder. Minha mãe vivia de salários de faxinas que ela fazia e eu, que já trabalhava desde os 15 anos, ganhava apenas um salário mínimo como jovem aprendiz. Juntando as nossas rendas, não havia a menor possibilidade de estudar aquilo, mesmo se deixássemos de pagar as demais contas. Então, foi no Prouni que vimos essa possibilidade.” Jal conseguiu uma das três vagas disponíveis na Faculdade de Belas Artes e terminou a graduação em 2013. Antes, porém, ela já havia estreado com o pé direito no Fashion Mob, e conquistou estágio em uma marca do line-up do SPFW. Parecia que a sua trajetória estava definida, mas ela resolveu dar um tempo do burburinho fashion e investiu em carreira solo no mercado do audiovisual. Até que, em 2019, André Hidalgo, curador da Casa de Criadores, a trouxe de volta ao circuito.
A grife Jal Vieira Brand debutou no calendário oficial da moda focada na ancestralidade de sua dona e nas imagens de potência das mulheres pretas. “A mais importante delas, naturalmente, é a minha mãe, Inêz, que apesar de ter tido o acesso aos direitos básicos negados por uma estrutura racista excludente, alimentou em mim a força e a capacidade de criação. É, principalmente, em mulheres como ela que o conceito da marca se sustenta.”
Para a mais recente empreitada, a estilista gosta de dizer que escolheu “mergulhar em sua própria imensidão”, trazendo para o centro da discussão a inserção de corporalidades diversas. “Os dias de quaren
ESTILISTA, ENGAJADA EM TEMAS RECORRENTES DO SEU COTIDIANO E FOCADA NA HUMANIZAÇÃO DOS PROCESSOS DE RECONSTRUÇÃO DA MODA NACIONAL, JAL VIEIRA É UM DOS NOMES MAIS PROMISSORES DO CIRCUITO CRIATIVO BRASILEIRO
tena afloraram em mim o autocuidado e a minha identificação como mulher preta, periférica e lésbica. Ao mesmo tempo que trouxe para mais perto – simbolicamente falando, já que estamos em afastamento social –, as mulheres que me inspiram. Nessa coletânea, convidei cinco poetas das quais alimentam em mim essa força e que, nesse atravessamento, também me curam. Sendo assim, são as palavras de Ryane Leão, Luz Ribeiro, Carol Dall Farra, Valentine e Gênesis que trazem todo o conceito e a estrutura da atual coleção, e que nessa simbologia reflete em maquetes têxteis que se impõem em páginas de livros, tranças nagôs e na fluidez da escrita.”
Sobre o momento de restrições que o mundo vive, Jal avisa que os seus métodos de produção se tornaram ainda mais cautelosos e humanizados. “O meu olhar para o upcycling ficou ainda mais claro e enfático. De tudo, o que fica para mim, é que é preciso humanizar ainda mais os processos. A moda é feita por pessoas. Milhões delas vivem dessa indústria. Só que, ainda assim, é também a segunda maior indústria poluente do mundo. O setor é extremamente necessário, porém precisa ser repensado. Além disso, eu que nunca fui muito adepta das redes sociais, precisei me adequar a elas, já que o alcance às pessoas passou a se dar somente por meio da internet”, diz. @jalvieirabrand
L’OFF Quais são os seus projetos futuros?
JAL Penso a minha inserção na moda não apenas como pessoa criativa, mas também como agente transformadora que precisa ocupar esses espaços para também trazer discussões e questionamentos com o meu trabalho. Então, além de estar à frente da marca, quero voltar a lecionar – já fui professora em ONGS. Ter tido a possibilidade de me munir de conhecimento foi fundamental para que me tornasse quem sou hoje e que meu trabalho não dissesse respeito somente à roupa que produzo, mas à mensagem que quero passar.
L’OFF O que você gostaria de destacar em seu discurso dentro do circuito da moda?
JAL Por meio de pesquisas sobre desenvolvimento têxtil, que está sempre presente nos meus trabalhos, também está intrínseco em cada tema e abordagem, o protagonismo preto. Mas reverberando vivências de vitórias. Normalmente, corpos pretos só são lembrados em pautas sobre racismo. E uma das coisas que sempre discuto com amigos e nos coletivos que faço parte, como é o caso da Célula Preta – coletivo de estilistas pretos da Casa de Criadores –, é que a nossa existência precisa ser considerada em todos os dias do ano. E que a nossa relevância não seja considerada apenas em 20 de novembro. Nós existimos e produzimos o ano inteiro. Somos extremamente criativos e talentosos. Então, precisamos nos questionar onde as mídias têm fomentado espaços aos nossos trabalhos, também. Para além disso, uma das coisas que também tenho tentado abarcar no meu trabalho, por exemplo, é o estudo de modelagem para corpos com deficiências e de como posso manter o meu trabalho com maquetes têxteis respeitando o conforto desses corpos. Enfim, o que mais tento é ampliar o meu olhar para outras vivências.
L’OFF Quais e quem são as suas inspirações?
JAL A tendência da maioria das pessoas da área de moda é falar o nome de grandes marcas que os inspiram. A minha inspiração não vem daí. Para mim, quem me inspira a criar é a minha mãe, que abdicou de toda uma vida para que eu pudesse concluir os estudos. São os professores que estavam em sala todos os dias transferindo o que sabiam para a gente. É a Ana Paula Cordeiro, que costura e modela comigo, e que, quando eu não tinha máquina de costura – ganhei recentemente de um casal de amigas que sempre me apoia nessa trajetória –, me deixava dormir na casa dela para concluir as coleções. É a Jeanne Silva, amiga que dedicava parte do tempo dela a produzir modelagens que eu ainda não conseguia na época. Meus “amigues” que estão sempre me incentivando. São as modelos que depositam toda a sua energia em cada trabalho que trocamos, ainda que exaustas depois de um dia de casting em outras marcas. É o que observo nas ruas entre pessoas e texturas. As pessoas que amo ou que amei. Enfim... Minha maior inspiração está nesses encontros e como eles me possibilitam aprender um pouquinho.
L’OFF Pode citar alguns jovens estilistas que merecem atenção?
JAL Os estilistas que mais tenho admirado o trabalho são também aqueles com quem tenho trocado aprendizado como é o caso de Maria Chantal, da Ateliê Maria Chantal (@ateliemariachantal), especializada em estamparia Adinkra; Carol Barreto, da Modativismo (@modativismo), que pensa a moda para além da roupa; Dendezeiro (@dendezeiro), de Pedro Batalha e Hisan Silva, de Salvador, que exaltam o Nordeste em seus trabalhos; Theo Alexandre, da marca Thear (@thearvestuario), de Goiânia, que usa a moda também como ferramenta de inserção social a outros corpos; Diego Gama, da tag diegogama (@y.diegogama), especialista em técnicas manuais; Fábio Costa, da Notequal (@notequal), que criou sua própria unidade de medida para produção de suas roupas; Weider Silveiro, (@weidersilveiro), um dos maiores nomes da moda nacional; Isaac Silva, da Isaac Silva Brand (@isaacsilvabrand), que traz a ancestralidade preta exaltada em todas as suas coleções; Gui Amorim, do Estúdio Traça (@estudiotraca), que produz moda atemporal; Diego Soares, da Rainha Nagô (@rainhanago), que produz roupas especializadas em corpos gordos; Priscilla Silva (@priscillasilvabrand), estilista que exalta a sua cultura e a origem indígena; Vicenta Perrotta (@vicenta_perrotta), que traz inúmeras pluralidades corpóreas em seus desfiles sempre pautados no upcycling e Mauricio Duarte, amazonense à frente da Mauricio Duarte Brand (@mauricioduartebrand).
L’OFF Sobre o empreendedorismo feminino, o que pode nos falar a respeito?
JAL A gente vive os impactos de uma sociedade patriarcal e machista todos os dias, né? Que afeta, inclusive, na nossa maneira de lidar com o dinheiro e estar à frente de um negócio. O respeito ao nosso trabalho e à nossa voz ainda é realmente uma luta diária. Porém, ao mesmo tempo, a gente entendeu a força de nos unirmos e de nos apoiarmos. E é nesse encontro com outras mulheres que também me encontro e me muno de ferramentas para estar no front da Jal Vieira Brand. Entender que é possível, sim, realizar esse trabalho e me encontrar respaldada nele. Hoje, por exemplo, eu só trabalho com mulheres. Oitenta e cinco por cento dessas mulheres são pretas. Estudo educação financeira com a Mônica Costa que está à frente do Grana Pretta e que presta consultoria a outras mulheres pretas, também. Enfim, falar e trocar com quem entende a nossa vivência e escuta a nossa voz potencializa também os nossos saberes. E isso impacta em como lidamos com os direcionamentos que damos nas nossas carreiras. Além de entendermos que a gente também merece ter sucesso nelas.
“Incluir é dizer sem precisar dizer, efetivamente, que toda e qualquer vivência pode ocupar qualquer espaço. Além disso, é preciso pensar muito mais do que fomentar esses espaços, mas como possibilitaremos que as corporalidades permaneçam neles com estruturas qualitativas e equitativas para cada um”