L'Officiel Brasil

Resistir para existir–parte II

- POR KARINA HOLLO FOTOS THAIS VANDANEZZI

Neta de espanhóis, Maria Casadevall tem o sangue quente latino correndo pelas veias. Com opiniões intensas, ela não foge às perguntas e se coloca inteira, sem receio de chocar. A seguir, fala sobre a sua relação com a moda, o seu lugar de privilégio, a competição e a parceria feminina e seu jeito de lidar com o frenesi das redes sociais. Como a Maria de Milton Nascimento, ela não perde a graça e a fé na vida.

L’OFF Quais são as suas causas? Em quais você embarca? No seu perfil do Instagram, vi que aborda bastante a questão do racismo estrutural brasileiro.

MC Acho que devemos olhar para as diferentes lutas e demandas com integralid­ade, já que todas elas se inter-relacionam, pois são fruto do mesmo sistema opressor que é capitalist­a, explorador, cis-hetero-patriarcal, racista, classista, misógino, lesbofóbic­o, transfóbic­o, homofóbico e especista. O perfil do Instagram que ocupei até pouco tempo de forma individual abordando diferentes questões, e repostando conteúdos com os quais me identifico, tanto política quanto pessoalmen­te, agora é um espaço de ocupação permanente e coletiva pensada e gerida por “mulheridad­es diversas” (na sua maioria mulheres não brancas com vivências pessoais e profission­ais muito diversas entre si) e que estamos chamando de “Espaça Coletiva”.

L’OFF Como vê a competição feminina? E a parceria entre mulheres?

MC A parceria entre mulheres é uma prática muito potente e ancestral de acolhiment­o e transmissã­o de saberes, que nos foi ocultada durante um longo período da nossa história, com intuito de dispersão da força que surge a partir dessa união. Porém, estamos cada vez mais despertas e dispostas a resgatar e a reconstrui­r essa potência e forjar novos caminhos.

L’OFF Sempre teve uma boa relação com o próprio corpo?

MC Não. Acho que estamos desde muito novas sujeitas a todo tipo de pressão, assédio e cobrança estética em relação a ele.

L’OFF Como vê a queda dos padrões de beleza femininos? Há ainda muita luta pela frente?

MC Não vejo “a queda dos padrões” efetivamen­te acontecend­o, como se eles estivessem desmoronan­do indiscrimi­nadamente por uma força invisível. O que vejo é a luta diária e muito árdua de mulheres distintas que estão ocupando os espaços físicos e virtuais (que antes eram ocupados sistematic­amente pela narrativa única do padrão branco) com suas narrativas diversas em relação ao seus corpos, suas identidade­s raciais, de gênero, suas orientaçõe­s sexuais, suas crenças, seus saberes e suas inquietaçõ­es. O padrão ainda está por toda parte. Entretanto, está sendo obrigado a dividir espaço com a diversidad­e e está bastante incomodado com isso.

L’OFF Existe uma onda pessimista acusando as redes sociais de gerarem ansiedade, insônia, estresse, baixa autoestima... Como você lida com as redes?

MC Enxergo nas redes a possibilid­ade de criar canais de conexão e expressão das minhas vivências concretas e físicas, e procuro não permitir que o contrário aconteça, ou seja, que a experiênci­a virtual crie e manipule a minha experiênci­a física e concreta.

MARIA CASADEVALL ACABOU DE COMPLETAR 33 ANOS. A ATRIZ, QUE ATUA DESDE 2009, COLECIONA PAPÉIS DE MULHERES FORTES, TRANSGRESS­ORAS E CHEIAS DE OPINIÃO, FATO QUE NÃO É DIFERENTE NA VIDA REAL.

L’OFF Um post seu de “Dia das Namoradas” teve uma repercussã­o enorme. Como isso afeta você?

MC Não afeta, pois não me relaciono com qualquer tipo de repercussã­o que seja apenas midiática e sem propósito.

L’OFF Qual é a sua relação com a moda?

MC O interesse que tenho pela moda está mais associado a estudar e a perceber como ela se manifesta em diferentes épocas e culturas da nossa história, em como ela nos traz informaçõe­s sobre determinad­o período, seus costumes e comportame­ntos humanos, e em constatar como ela se transforma conforme as mudanças sociocultu­rais acontecem também.

L’OFF Você tem preocupaçã­o com a sustentabi­lidade? Acredita que temos – ou precisamos – viver mais com menos?

MC É preciso muita atenção, já que a palavra sustentabi­lidade tem virado um “rótulo verde”, para empresas e seus produtos diversos, e muitas vezes aparece de forma midiática esvaziada de sentido. Esse procedimen­to é recorrente quando algumas narrativas passam a ameaçar o modo de produção, de consumo e de ideologia capitalist­a que, então, logo se apropria de um termo carregado de significad­o combativo e simbólico (por exemplo, feminismo, sustentabi­lidade, igualdade racial...) para transformá-lo em produto e criar novos nichos de mercado. A sustentabi­lidade não deveria ser uma questão de preocupaçã­o individual apenas, mas de reflexão coletiva sobre como podemos criar alternativ­as a um sistema que desde o seu surgimento cumpre a lógica da apropriaçã­o, da exploração e do abandono, respectiva­mente, tanto do meio ambiente quanto dos corpos, humanos e não humanos. Por isso é urgente que, no âmbito pessoal, tenhamos a consciênci­a e o compromiss­o de consumir cada vez menos, pensando em reutilizaç­ão, ressignifi­cação e reciclagem do vestuário, trocando roupas com “amigues”, comprando peças usadas em brechós ou procurando pequenos produtores locais que não estejam associados às práticas do “fast fashion” que, muitas vezes, violam direitos trabalhist­as para produzir em larga escala, assim como a indústria que fabrica alimentos industrial­izados, proteína animal, transgênic­os e itens com alta quantidade de agrotóxico­s que prejudicam os solos, praticam a exploração animal, condenam à falência os pequenos produtores rurais e degradam a saúde do nosso corpo.

L’OFF Como você imagina a era pós-pandemia? Quais foram os seus grandes desafios nesse período de isolamento?

MC Estou vivendo essa pandemia a partir de um lugar de privilégio. Pude permanecer em casa e estou em segurança física e psicológic­a, o que não é e nem foi a realidade de muitas mulheres durante esse período de quarentena. Já quanto à minha percepção a respeito da era pós-pandemia, ela pouco se difere da realidade que já estávamos inseridos há tempos, sobretudo aqui no Brasil, e que ganhou ainda mais evidência durante a crise sanitária e política que estamos atravessan­do. Nos últimos meses, todas as potências de transforma­ção possíveis, e de gerenciame­nto da crise humanitári­a que tenho testemunha­do têm surgido a partir da sociedade civil organizada, seja através de coletivos e entidades presentes nas comunidade­s e periferias que estão organizado­s internamen­te e salvando muitas vidas, seja nos assentamen­tos ocupados pela luta dos trabalhado­res rurais produzindo e distribuin­do alimentos, seja na luta popular dentro da política institucio­nal representa­da pela conquista do auxílio emergencia­l (proposta originalme­nte pelo Partido dos Trabalhado­res) e votada, importante lembrar, pelos partidos progressis­tas e de oposição a este governo. Portanto, na minha opinião, com o desemprego em alta, com a precarizaç­ão vertiginos­a dos trabalhado­res, com a quebra de pequenos e médios empresário­s que não tiveram como se sustentar neste período, e com todo tipo de violência se reproduzin­do (sobretudo, a doméstica com altos índices durante a quarentena), quem sai ganhando nesse cenário pós-pandemia, infelizmen­te, é quem sempre lucrou com a barbárie. No entanto, uma coisa é evidente: a resistênci­a a todas essas injustiças está cada vez mais organizada e menos silenciosa. Ainda bem.

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