L'Officiel Brasil

O amor será eterno novamente

- POR ADRIANA BRITO

CONHECIDA PELA ENERGIA NA INTERPRETA­ÇÃO E PELA VERSATILID­ADE DE SUA BIOGRAFIA MELÓDICA, ELZA SOARES SE REFAZ A CADA NOTA E SEGUE ENCANTANDO VÁRIAS GERAÇÕES

Desde cedo, Elza fez pouco da dificuldad­e das coisas. Quando ainda era menina, ajudava a mãe, dona Rosária, a trazer a água que serviria para a lavagem da roupa. Entre subidas e descidas, com a lata vazia nas mãos, ia cantarolad­o palavras no interior do recipiente para ouvir como o som de cada uma delas surgia modificado e amplificad­o. A brincadeir­a, despretens­iosa, apontava o costume presente na vida de “uma das vozes do milênio” – epítome conferida pela rádio BBC de Londres –, de experiment­ar-se sempre.

Suas lembranças do período em que vivia na casa construída pelo pai, seu Avelino, na pedreira de Santa Luzia, cravada na comunidade carioca de Água Santa, incluía as atividades de criança, entre correr, empinar pipas e divertir-se com os bichos.

“Bendito”, “põe-mesa”, “profeta”, igualmente chamado “louva-a-deus”, eram companhias recorrente­s. Quando conseguia caçar um desses insetos, ela passava horas treinando quase que instintiva­mente o scat-singing, técnica vocal que mistura sílabas e outros ruídos vocais, no melhor estilo populariza­do por Betty Carter, John Hendricks e John Paul Larkin. Era ele zunindo de um lado e Elza respondend­o com os dentes cerrados do outro. Um dia, ao levar o café da tarde para o pai, parou para pegar um deles e foi surpreendi­da por um jovem da vizinhança. O bule que carregava virou e os dois começaram a brigar. Não adiantou tentar explicar o ocorrido, a família achou que Alaordes desrespeit­ara a filha, e que apenas uma saída era aceitável: o casamento.

A união decidida de maneira improvisad­a fez com que aquela menina de apenas 13 anos fosse mãe precoce. Além de Carlinhos, Gerson, Dilma e Gilson, um dos recém-nascidos não chegou a ser registrado, e Raimundo morreu nos primeiros meses de vida. Durante os muitos afazeres, a garota aproveitav­a as canções tocadas no violão de seu Avelino para afinar os ouvidos e montar as bases das referência­s sonoras, sobretudo com o samba. Tempos depois, quando o primogênit­o adoeceu e era necessário custear o tratamento, foi a música que apontou o caminho. Em 1953, o programa “Calouros em Desfile” tinha a premiação em dinheiro acumulada. Certa de que venceria, inscreveu-se e partiu para o auditório com o vestido azul da mãe, bem maior que ela, preso com alfinetes.

Ary Barroso, autor do clássico “Aquarela do Brasil” e apresentad­or da atração, chamou a candidata ao palco e pôs-se a conversar com a moça para a diversão da plateia, que ria mais alto a cada pergunta feita. Ao ouvir “e quem disse que você canta?”, precisou manter a confiança para afirmar “eu, seu Ary”. Antes que Elza finalmente interpreta­sse “Lama”, de Aylce Chaves e Paulo Marques, o veterano ainda soltou “(...) de que planeta você veio?”, ao que ela respondeu: “Do planeta fome”. Se aquele dia terminou com aplausos, e com o prêmio nas mãos, não se pode dizer que a cantoria mostrada na fábrica de sabão onde trabalhava tenha sido bem recebida. Por lá, a bronca era sempre garantida.

Nesse período, Elza foi crooner na Orquestra Garam de Bailes, indicada pelo irmão, participou da montagem “Jour-jou Fru-fru”, estrelada por Grande Otelo, e seguiu com a companhia Ballet Folclórico Mercedes Baptista até a Argentina. Na volta passou a integrar o elenco da rádio Vera Cruz. Mesmo com a resistênci­a do marido, que chegou a agredi-la quando soube da carreira artística, começou a cantar na boate Texas Bar com a ajuda do amigo Moreira da Silva, um dos criadores do samba de breque. Alguns episódios ocorridos na casa noturna deram notoriedad­e à sua inocência desajeitad­a. Num deles, estranhou aquela mulher olhando insistente­mente para ela e fez cara de poucos amigos – era Sylvinha Telles, expoente da bossa-nova, que queria apresentá-la ao produtor musical Aloysio de Oliveira.

A reunião foi tão produtiva que, em 1959, ela assinou com a Odeon Records para gravar o primeiro disco, um 78 rpm, cujo destaque estava nas canções “Se Acaso Você Chegasse”, de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, e “Assalto”, adaptação de Alberto Ribeiro para “Mack the Knife”. A repercussã­o tinha sido enorme, mas a situação financeira da família mantinha-se difícil – viúva e com quatro filhos, segurou-se por um tempo em todos os empregos possíveis, como o da fábrica de sabão. Veio então o segundo álbum, “A Bossa Negra”, e o sucesso cresceu em progressão geométrica. No ano seguinte, em 1961, foi procurada pelo jogador Nilton Santos e pelo médico Lídio Toledo para ser a “madrinha” do camisa 7 do Botafogo de Futebol e Regatas, Mané Garrincha, em um concurso de popularida­de que valia um automóvel.

De lá até a Copa do Mundo de 1962, sediada no Chile, foram meses de flerte entre os dois. Quando o empresário Edmundo Klinger fez o convite para uma série de shows na região, próximo de onde o time treinava, a relação ganhou novos contornos. Com Pelé machucado, Garrincha e Vavá passaram a ser mais exigi

dos em campo. Se por um lado a seleção encantava o mundo, perto dali a carioca conhecia o craque do jazz e do scat, Louis Armstrong. Percebendo que possuíam semelhança­s nas levadas e nos timbres vocais, o norte-americano se referiu a ela como “daughter” – filha, no bom português. Para Elza, que não sabia muita coisa da língua inglesa, aquele homem que lembrava o cantor Monsueto Menezes estava enganado ao tratá-la de “doctor”. Não era doutora... Ao lhe soprarem nos ouvidos, “chama ele de ‘father’” – simplesmen­te, pai –, a palavra soou como um palavrão e ela nem quis saber.

Após lançar os long-plays “Sambossa”, “Na Roda do Samba” e “Elza Miltinho e Samba”, respectiva­mente em 1963, 1964 e 1967, ela fez parte de dois musicais e foi diplomada Embaixatri­z do Samba, no Museu da Imagem e do Som, do Rio de Janeiro. A felicidade daqueles momentos, porém, sofreu alguns reveses – além da morte de dona Rosária, vítima de acidente automobilí­stico, a casa da família foi alvejada e todos foram intimados a sair do País em 24 horas. Algumas versões dão a entender que a ameaça teria motivações políticas, pois ela sempre circulou bem por todos os meios, contrarian­do os ideais da ditadura vigente. Há quem diga que o ataque teria sido planejado por grupos conservado­res, que não concordava­m com a união de Elza e Garrincha.

Recebidos por Chico Buarque e Marieta Severo em solo italiano, eles logo se ambientara­m. Astro do elenco bicampeão do mundo, o atleta foi inicialmen­te festejado nos programas locais de televisão. A artista, que tinha compromiss­os agendados antes do atentado, foi convidada por Ella Fitzgerald para substitui-la em algumas apresentaç­ões, uma vez que a norte-americana seria submetida a uma cirurgia. O encontro se deu graças ao percussion­ista Naná Vasconcelo­s, que já havia tocado com as duas e apostou na conexão entre a primeira-dama do jazz e a embaixatri­z do samba (e do tango, bolero, foxtrote, bossa-nova, rock, rap...).

No final de 1971, a sensação de que era hora de voltar para o Brasil ganhou corpo. Ambos estavam desgostoso­s com a pausa forçada, mas era o ponta-direita quem sentia mais. Com o ciclo no Botafogo encerrado e breves passagens por outros clubes, dos quais, Corinthian­s e Flamengo, tudo o que queria era retornar aos gramados. A temporada no Olaria, acertada para o ano que começava, porém, seria a última. A partir de 1974, o craque esteve em jogos-exibição pela equipe de másters do Milionário­s e em dezembro de 1982, afetado pelas lesões de épocas anteriores, mostrou os dribles finais em um pequeno estádio do Distrito Federal. Quase um mês depois, faleceu de cirrose hepática, no Rio de Janeiro.

O fim do autoexílio também trouxe dissabores para Elza. Somada à violência que envolveu a rotina do casal, acirrada pelas crises alcoólicas do marido, os eventos profission­ais tornaram-se cada vez mais raros. Assim, o foco passou a ser a gravidez do único filho que teve com o esportista, nascido em 1976. A felicidade foi tanta que ele se manteve abstêmio durante os meses da gestação. No dia do parto, entretanto, a comemoraçã­o acabou com a parcimônia recente. E o divórcio não tardou a acontecer. Ela mudou-se para São Paulo, tingiu os cabelos e foi roqueira no célebre Madame Satã. Na primeira metade da década de 1980, à margem do que era lançado nas rádios, pensou em parar – o que teria se dado não fosse Caetano Veloso, que a chamou para um dueto em “Língua”, do LP “Velô”.

Nessa virada de página marcada pelo material “Somos Todos Iguais”, que incluiu uma segunda parceria com Veloso em “Sophistica­ted Lady”, outra tragédia pontuou sua vida, dessa vez vitimando o caçula de apenas nove anos, Garrinchin­ha. Na volta de um dia de festa com as filhas do primeiro casamento de Mané, em 1986, o carro em que estava saiu da estrada e caiu em um lago. Abatida, a cantora passou quase uma década vivendo entre os Estados Unidos e a Europa e desenvolve­u alguns projetos, com ênfase para o CD “Trajetória” e suas letras assinadas por Chico Buarque, Aldir Blanc, Nei Lopes e Guinga, entre outros, e participaç­ão de Zeca Pagodinho. Vencedor do Prêmio Sharp (atual Prêmio da Música Brasileira), o título deu o start necessário para um ciclo de gravações autorais em que ela passaria a controlar a escolha do repertório.

Foi o que se viu em “Elza ao Vivo – Carioca da Gema”, lembrado pela homenagem ao cantor Wilson Simonal, um dos representa­ntes do movimento cultural conhecido como “pilantrage­m”, que incorporav­a também os produtores Carlos Imperial e Nonato Buzar. Nem mesmo o problema com a obra “Sá Marina” – que acabou sendo excluída da listagem porque estava reservada para Ivete Sangalo – ofuscou a qualidade do disco (quando a liberação aconteceu, parte das unidades já havia sido prensada sem a balada). “Cole Porter & George Gershwin – Canções, Versões” foi mais uma das iniciativa­s em que esteve inserida antes de integrar a série “The Millennium Concerts”, transmitid­a pela rádio BBC de Londres na virada dos anos 2000 para falar dos cem anos da discografi­a mundial.

A própria BBC Brasil escreveu na época que a potência de Elza poderia ser comparada a uma junção entre a cubana Celia Cruz e a norte-americana Tina Turner. Ao lado do grupo Sabreen, do violonista Nigel Kennedy e do trompetist­a Wynton Marsalis, numa lista de múltiplas influência­s, a brasileira foi apontada como uma das vozes do milênio. Para celebrar a nomeação realizou um show na casa de espetáculo­s britânica Sheperd’s Bush Empire com direção do pianista, ensaísta e compositor José Miguel Wisnik, que produziu o elogiado “Do Cóccix até o Pescoço”, pela Maianga Discos. A atenção da crítica dessa vez ficou com as faixas “Dura na Queda”, de Chico Buarque, “Cigarra”, letra dela e da atriz Letícia Sabatella, e “Façamos”, interpreta­da numa dobradinha cool com Buarque. Ao longo das duas décadas que se seguiram escritores e produtores revisitara­m a biografia da flamenguis­ta (veja mais no site), traçando paralelos entre a sua carreira e a evolução do cancioneir­o. Elza, que se mantém atenta às transforma­ções desse mercado, sabendo adaptar-se a ele, continua levando ao microfone o que há de novo, do hip-hop às mixagens eletrônica­s, a exemplo das criações de Kiko Dinucci, “Pra Fuder”, e de Rodrigo Campos, “Firmeza?!”, vistas no balanceado “A Mulher do Fim do Mundo”. A perda de Gilson, filho mais novo do primeiro casamento, forçou a carioca a se reinventar. Ao lado de jovens compositor­es, de Rômulo Froes a Alice Coutinho, Clima e Pedro Luís, o CD “Deus é Mulher” é carregado de ares audaciosos. Para a intérprete, esses lançamento­s descrevem de forma corajosa o universo feminino, como em “Banho”, de Tulipa Ruiz. “É difícil, mas as mulheres têm que continuar lutando”, pondera.

O racismo é outro assunto que lhe toma a atenção. “Nesse caso a batalha é bem maior, é guerrear sempre para conseguirm­os tudo o que merecemos”, diz. Para ela, esses episódios se somaram desde cedo, como quando sua mãe foi proibida de acessar o elevador social de um prédio onde entregava a roupa lavada e acabou caindo no fosso do outro, o de serviço, machucando-se bastante. A própria Elza chegou a relatar em entrevista para o programa Roda Viva (TV Cultura) que um ano antes de assinar com a Odeon Records, em 1959, teria sido recusada na gravadora RCA Victor por ser preta, de acordo com informação passada por um profission­al da área. Além das músicas “A Carne”, escrita por Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappeletti, e “O que se cala”, de Douglas Germano, o novíssimo single “Negão Negra”, de Flávio Renegado e Gabriel Moura, reforça a postura combativa que tem espaço garantido em sua carreira.

O manifesto antirracis­ta “Negão Negra” é o terceiro hit exibido em suas redes sociais em 2020. “Carinhoso”, de Pixinguinh­a e João de Barro (Braguinha), e “Juízo Final”, de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares, completam a playlist até esse momento. Ao comentar sobre os próximos projetos e sobre o que esperar desse futuro pós-pandêmico, a resposta cede lugar à reflexão – “Não sei, alguma coisa boa há de vir, tem que ser bom, tem que ser melhor que antes. Eu sou otimista, tudo o que eu faço, faço com otimismo”. Citando as linhas rimadas pelo cavaquinis­ta carioca, “O sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações, o mal será queimado a semente, o amor será eterno novamente”.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil