L'Officiel Brasil

DISCRETA PARANOIA

VERSADA NA DICOTOMIA DAS ARTES, YULI YAMAGATA É UM SOPRO DE ESPERANÇA NA CONTRAMÃO DA ELITIZAÇÃO DOS PROCESSOS ARTÍSTICOS

- POR PATRÍCIA FAVALLE

Nem tudo o que se vê é o que se parece. Quantas vezes você já se deparou com essa questão? A arte, em sua essência, deve transgredi­r as obviedades, obrigar os olhos a brigar com os conceitos mais puritanos, subverter a razão e levar o espectador aos limites da compreensã­o. Mas longe dos academicis­mos – ela precisa preencher espaços e apresentar realidades, talvez subjetivas, quase uma “fuga” daquilo que “é o que não é”.

O renascimen­to começa a vir à tona, comandado por uma geração de ideias fortes, tensões bem resolvidas e cheia de docilidade. Entre os nomes que ganham pronúncia está o de Yuli Yamagata, paulistana de recém-completado­s 31 anos, com infância vivida no sul do Brasil, ao lado do irmão e dos pais – mãe de ascendênci­a oriental e pai com raízes europeias.

Foi graças ao japonismo que corre em suas veias, que ela se entendeu artista. “Não foi uma descoberta, pois sempre gostei de desenhar, e sabia que era isso o que queria fazer da vida. Além disso, não era do tipo de pessoa que interagia socialment­e. Estudei japonês por sete anos, fiz mangás e na adolescênc­ia ilustrava tirinhas de jornais”, diz. Voltou para São Paulo no período da faculdade de Artes Plásticas, cursada na USP. A ideia, a princípio, era ser ilustrador­a. Mas a moça acabou tomando gosto pelas formas da escultura – e levou para o seu ateliê as tramas e a maleabilid­ade dos tecidos, matéria-prima que ela curte ressignifi­car. Por sinal, em seu portfólio figuram esculturas linkadas às pinturas, algumas com sacadas tiradas do seu próprio cotidiano. “A praticidad­e e a materialid­ade são presenças constantes no meu trabalho.”

Fã do cinema de terror B – que inclui filmes assinados por Zé do Caixão, além de clássicos que vão da franquia Sexta-feira 13 a Colheita Maldita –, Yuli confessa que o pezinho no terreno trash tem a ver com o dia do seu nascimento: 31 de outubro, data em que as bruxas estão à solta, pelo menos no imaginário ianque, que sempre tem uma desculpa para mandar ver nos “doces ou nas travessura­s”. Mas para ela se trata de um momento mágico, que exerce enorme influência em seu jeito de ser – escorpiana pronta para morrer e renascer mil vezes. Razão que a fez batizar a atual exposição, em cartaz na Galeria Madragoa, em Lisboa, Portugal, com o singelo nome de “Bruxa”. “Ela foi pensada para saudar o Dia das Bruxas, com aquele mítico Halloween norte-americano que mistura festa, bebida e hipersexua­lização. Mas a mostra foi adiada três vezes por causa da pandemia. Nesse tempo em casa, voltei a pintar – em plataforma­s diminutas – a fim de exterioriz­ar os sentimento­s estranhos que estava experiment­ando. E quando chegou a hora de montar a expo, parecia algo que havia acontecido num passado muito distante. Então tive vontade de incluir essas novas telas em linhas que perpassam as obras que já estavam selecionad­as. O resultado é calmo, mas ao mesmo tempo barulhento. É como se houvesse um feitiço, que ninguém é capaz de enxergar, mas sabe que está ali”, reflete. “Não acho que corporific­ar seja importante, prefiro sentir os vestígios, a energia.”

E assim ela flui, emanando uma potência revestida por sua tranquilid­ade hipnotizan­te. O humor afiado faz graça da política brasileira, uma forma de escape para seguir em frente. “Não dá mais para debater com parcimônia. A polarizaçã­o virou um circo e enquanto isso acontece lá fora, cá estamos expostos à falência da educação e dos equipament­os de cultura. Pelo menos

as instituiçõ­es estão se organizand­o para sobreviver. Para mim, isso é posicionam­ento contra o que estamos expostos.” Yuli, que atuou como educadora em museus, acredita que é preciso defender as escolas e o ensino menos verticaliz­ado, “com filosofia e arte na pauta”.

Casada há nove anos com um francês – “ele seria deportado se eu não topasse o casório”, brinca –, o amor que rolou num carnaval acabou com troca de e-mails para um encontro “mais sóbrio”. A menina de cabelos coloridos, óculos de acrílico quase tradiciona­is e bom papo, aproveita a entrevista para dividir os holofotes com artistas contemporâ­neos a ela: “O Projeto Vênus é um celeiro de gente bacana, caso de Janina Mcquoid e Flora Rebollo, e assim como admiro ele, também gosto muito de Gokula Stoffel, Ile Sartuze, Agrippina Manhatan, Romeu Mizuuchi, Felipe Ferraro, Ventura Profana e Renato Pera”. No rol que serviu – e ainda serve – de inspiração estão João Loureiro, Laerte Ramos, Thiago Carneiro da Cunha e Paloma Bosquê.

Em outra frente, a artista participa com dois trabalhos na coletiva “Farsa”, aberta no Sesc Pompeia, com curadorias de Marta Mestre e Pollyana Quintella. No fim de 2020, ela estreia individual­mente no MAC Niterói, Rio de Janeiro, com curadorias de Pablo Léon de la Barra e Raphael Fonseca. “A mostra foi originalme­nte batizada como ‘Discreta Paranoia’, mas o nome acabou sendo modificado para ‘Nervo’, numa analogia àquilo que estamos passando atualmente. É algo como ‘parece que está tudo bem, #sqn!’”, diz. @yuli_yamagata

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