DISCRETA PARANOIA
VERSADA NA DICOTOMIA DAS ARTES, YULI YAMAGATA É UM SOPRO DE ESPERANÇA NA CONTRAMÃO DA ELITIZAÇÃO DOS PROCESSOS ARTÍSTICOS
Nem tudo o que se vê é o que se parece. Quantas vezes você já se deparou com essa questão? A arte, em sua essência, deve transgredir as obviedades, obrigar os olhos a brigar com os conceitos mais puritanos, subverter a razão e levar o espectador aos limites da compreensão. Mas longe dos academicismos – ela precisa preencher espaços e apresentar realidades, talvez subjetivas, quase uma “fuga” daquilo que “é o que não é”.
O renascimento começa a vir à tona, comandado por uma geração de ideias fortes, tensões bem resolvidas e cheia de docilidade. Entre os nomes que ganham pronúncia está o de Yuli Yamagata, paulistana de recém-completados 31 anos, com infância vivida no sul do Brasil, ao lado do irmão e dos pais – mãe de ascendência oriental e pai com raízes europeias.
Foi graças ao japonismo que corre em suas veias, que ela se entendeu artista. “Não foi uma descoberta, pois sempre gostei de desenhar, e sabia que era isso o que queria fazer da vida. Além disso, não era do tipo de pessoa que interagia socialmente. Estudei japonês por sete anos, fiz mangás e na adolescência ilustrava tirinhas de jornais”, diz. Voltou para São Paulo no período da faculdade de Artes Plásticas, cursada na USP. A ideia, a princípio, era ser ilustradora. Mas a moça acabou tomando gosto pelas formas da escultura – e levou para o seu ateliê as tramas e a maleabilidade dos tecidos, matéria-prima que ela curte ressignificar. Por sinal, em seu portfólio figuram esculturas linkadas às pinturas, algumas com sacadas tiradas do seu próprio cotidiano. “A praticidade e a materialidade são presenças constantes no meu trabalho.”
Fã do cinema de terror B – que inclui filmes assinados por Zé do Caixão, além de clássicos que vão da franquia Sexta-feira 13 a Colheita Maldita –, Yuli confessa que o pezinho no terreno trash tem a ver com o dia do seu nascimento: 31 de outubro, data em que as bruxas estão à solta, pelo menos no imaginário ianque, que sempre tem uma desculpa para mandar ver nos “doces ou nas travessuras”. Mas para ela se trata de um momento mágico, que exerce enorme influência em seu jeito de ser – escorpiana pronta para morrer e renascer mil vezes. Razão que a fez batizar a atual exposição, em cartaz na Galeria Madragoa, em Lisboa, Portugal, com o singelo nome de “Bruxa”. “Ela foi pensada para saudar o Dia das Bruxas, com aquele mítico Halloween norte-americano que mistura festa, bebida e hipersexualização. Mas a mostra foi adiada três vezes por causa da pandemia. Nesse tempo em casa, voltei a pintar – em plataformas diminutas – a fim de exteriorizar os sentimentos estranhos que estava experimentando. E quando chegou a hora de montar a expo, parecia algo que havia acontecido num passado muito distante. Então tive vontade de incluir essas novas telas em linhas que perpassam as obras que já estavam selecionadas. O resultado é calmo, mas ao mesmo tempo barulhento. É como se houvesse um feitiço, que ninguém é capaz de enxergar, mas sabe que está ali”, reflete. “Não acho que corporificar seja importante, prefiro sentir os vestígios, a energia.”
E assim ela flui, emanando uma potência revestida por sua tranquilidade hipnotizante. O humor afiado faz graça da política brasileira, uma forma de escape para seguir em frente. “Não dá mais para debater com parcimônia. A polarização virou um circo e enquanto isso acontece lá fora, cá estamos expostos à falência da educação e dos equipamentos de cultura. Pelo menos
as instituições estão se organizando para sobreviver. Para mim, isso é posicionamento contra o que estamos expostos.” Yuli, que atuou como educadora em museus, acredita que é preciso defender as escolas e o ensino menos verticalizado, “com filosofia e arte na pauta”.
Casada há nove anos com um francês – “ele seria deportado se eu não topasse o casório”, brinca –, o amor que rolou num carnaval acabou com troca de e-mails para um encontro “mais sóbrio”. A menina de cabelos coloridos, óculos de acrílico quase tradicionais e bom papo, aproveita a entrevista para dividir os holofotes com artistas contemporâneos a ela: “O Projeto Vênus é um celeiro de gente bacana, caso de Janina Mcquoid e Flora Rebollo, e assim como admiro ele, também gosto muito de Gokula Stoffel, Ile Sartuze, Agrippina Manhatan, Romeu Mizuuchi, Felipe Ferraro, Ventura Profana e Renato Pera”. No rol que serviu – e ainda serve – de inspiração estão João Loureiro, Laerte Ramos, Thiago Carneiro da Cunha e Paloma Bosquê.
Em outra frente, a artista participa com dois trabalhos na coletiva “Farsa”, aberta no Sesc Pompeia, com curadorias de Marta Mestre e Pollyana Quintella. No fim de 2020, ela estreia individualmente no MAC Niterói, Rio de Janeiro, com curadorias de Pablo Léon de la Barra e Raphael Fonseca. “A mostra foi originalmente batizada como ‘Discreta Paranoia’, mas o nome acabou sendo modificado para ‘Nervo’, numa analogia àquilo que estamos passando atualmente. É algo como ‘parece que está tudo bem, #sqn!’”, diz. @yuli_yamagata