QUEM É VOCÊ NO MEIO DA MULTIDÃO?
A ARTISTA VISUAL CLARA MOREIRA É UM DOS NOMES MAIS INTERESSANTES DENTRO DO SEGMENTO QUE ALINHA PESQUISA, COMUNICAÇÃO E CINEMA
Os desenhos feitos à mão por Clara Moreira ajudam a contar a história recente do cinema brasileiro. A artista, de 35 anos, nascida e criada no Recife, sabe bem o caminho que trilhou para chegar até aqui. “Já desenhava bastante desde muito nova, e num momento da infância fui percebendo que os desenhos que fazia podiam ganhar outro tipo de dimensão numa relação mais poética e misteriosa, ou mesmo sem explicação, e que nesses abismos existia algo que me interessava, um tipo de desvio na ordem da imagem, uma mudança na conduta da comunicação que eu gostava de criar, por prazer, um tipo de exagero, segredo, revelação, erro, invento, algo que habitava a imagem para além do desenho enquanto técnica e mecânica.”
Criada em uma família que estendeu a vida para as celebrações ao ar livre, os folguedos e as reuniões regadas a comilanças coletivas, Clara se percebeu em um universo quase teatralizado, em que a arte virou norte. “Fui vivendo com o desenho sempre ao meu lado. Na juventude desenhava de um jeito mais selvagem, inconsequente, fazia desenhos muito íntimos e os dava para as pessoas por quem me apaixonava. Fiquei muito tempo desenhando assim, entregue e despreocupada. Nessa época não pensava que trabalharia com a minha própria produção artística.”
Canhota, dona de uma fala envolvente e carregada pelo sotaque de erres fortes, a artista se revela rebelde, fascinada pelos desvios. “Quando essa minha curiosidade sobre o desvio começou a se tornar uma percepção e um gesto franco, tive o entendimento de que eu era artista. Fui fazendo e experimentando várias coisas, estudei e trabalhei com outras coisas, mas nunca parei de desenhar. Não é fácil. É instável como caminhar na corda bamba: tem mais abismo do que chão. Mas precisava tentar.”
E quem disse que ela olhou para o abismo? Clara preferiu mirar no pedacinho de terra firme e viu no cinema, ou melhor, nos pôsteres das sessões dos cineclubes uma opção de trabalho. “Fiz mais de 70 desenhos para cartazes de cinema como experimento artístico. Esse foi um momento que me colocou dentro da produção artística, algo que realmente não estava nos meus planos”, confessa. Com o destino traçado, Clara Moreira traz leveza e elegância ao circuito das artes. Em seu portfólio figuram corpos em transe e em mutações, além de metáforas que rasgam a vontade de refletir. “Perguntam-me: ‘o que eu sou?’ Sou um desenho”, pontua. Para entender quem é essa mulher, siga adiante.
L’OFFICIEL Como acontece o seu processo de criação?
CLARA MOREIRA Às vezes acordo pela manhã com uma imagem na cabeça: um corpo no meio da ação, como se flagrado em pleno voo, no meio do passo de dança. Essa imagem permanece como um pensamento por um tempo, eu fico observando, admirando, a imagem vai se detalhando, como se fosse um processo de desenho, mas ainda no campo da imaginação, misteriosamente, no campo do desejo. Passo um tempo convivendo com a imagem no pensamento, pode durar dias, semanas, meses, e então, em algum momento oportuno, eu me sento e começo a desenhá-la. Assim surge um desenho. Noutras vezes, deixo a mão perambular com o lápis sobre o papel e começam a surgir as imagens, sem passar pelo cultivo do pensamento, já diretamente sobre o papel. Tenho criado dessa forma, por enquanto, e são processos que me desafiam e que me surpreendem. Eu sei que essas imagens refletem sensações ou são como frases que utilizam um vocabulário de sentimentos que não conseguiria escrever de outra forma, como no procedimento do poema, mas sem a utilização de palavras. Acho que as imagens vêm de uma partícula extremamente íntima, de dentro de mim, tão íntima que nem eu mesma a reconheço. Por outro lado, talvez o cúmulo da intimidade de certa forma seja algo coletivo, pois as pessoas também se identificam com essas mesmas imagens.
LOFF O que você tem feito durante a quarentena? CM Tenho trabalhado! No ateliê (que é num pequeno cômodo no apartamento onde moro) e nos muitos infinitos trabalhos domésticos hiperconcentrados e sempre acumulados. Mas passei por fases diferentes durante esses seis meses, houve momentos mais difíceis, em que me senti paralisada, assustada, cansada. E outros momentos em que as mesmas emoções me levavam a produzir bastante, desenhos, escritos, projetos, estudos. Tem todo um trabalho também que é viver no Brasil neste momento, com as desigualdades sociais históricas agudizadas no processo pandêmico e por uma atitude negacionista e neoliberal do governo federal. São muitas perdas. Mas
vou tentando caminhar percorrendo um dia de cada vez, cuidando dos meus, amando-os, cuidando de mim. Convivendo com a latência dessa espera por uma vacina, aprendendo a conviver rodeada de saudades.
LOFF Por sinal, como tem visto o atual governo e os sucessivos cortes de investimentos nas áreas da cultura?
CM É muito grave e é um processo avançado de destruição. E são várias as formas de corte. Têm os cortes objetivos e declarados na estrutura do governo e têm outros cortes camuflados, que são vários tipos de perseguição, ameaça e censura enlameadas dentro da burocracia institucional. Têm outros cortes de natureza simbólica, muito violentos, na estética, na comunicação, num espantoso retrocesso, num discurso de desprezo, mentiras e superficialidades, de apagamento histórico que funciona como um golpe no peito da poesia, do sonho, da riqueza e da profundidade da nossa arte, da nossa história. E tem um tipo de corte que dá lastro ao avanço dos outros cortes, que é uma atuação muito poderosa de propaganda que se retroalimenta e que se expande com um público conservador ruidoso e agressivo, espalhando um sentimento no ar de que ser artista e a arte são inúteis, supérfluos, besteira, “vagabundos”, ou ainda que a atividade artística deve ser banida. É um sequestro de futuro.
LOFF Quais os artistas que você toma por referência? CM Percebo a “referência” como uma sensação, um estado do corpo. Algo que também revela as nossas vivências, memórias e desejos. Algo que sentimos quando a chuva escorre e somos paralisados por uma lembrança. Nossas lembranças mais bonitas. E também as dores que nos roem. Às vezes, as dores que roem as nossas mães, as nossas avós, a nossa história, a nossa geografia. Estas são referências. Algo que sinto observando a minha mãe, ouvindo-a. É algo que sinto alimentando os meus filhos. O amor imenso que sinto pela cidade do Recife. E a revolta que eu sinto, a raiva que eu sinto. O batuque, a umidade que me constitui, a saudade, a amizade, este medo que nos congela, esta nossa ferida imensa, aberta. Alguns cheiros, bichos, sons, sustos. Os músicos afinando os instrumentos antes do ensaio da orquestra de frevo em Guadalupe. Tudo aquilo que arrepia. O áudio longo que a amiga me enviou pelo Whatsapp, dando os detalhes do ocorrido e eu me ponho inteira a ouvi-la. Uma canção que ouvi na live de Teresa Cristina, e ela com os olhos n’água. Pisar na Rua da Aurora logo após assistir Cabíria no Cinema São Luiz, todos estávamos chorando, não sabíamos se pela dor ou se pela esperança imensa. A noite era imensa e eu não sentia medo de nada. A luta das mulheres, a utopia em Paulo Freire, o poema “Papel de seda”, de Ana Martins Marques, o conto “Banhos de mar”, de Clarice Lispector, a voz de Juçara Marçal. Conversar com a desconhecida, descobrir devagarinho a obra da artista Carolee Schneemann. A pesquisa de imagens na internet com os termos: “silhuetas de Ana Mendieta”. Imaginar-me vendo as obras pessoalmente. Imaginar ver pessoalmente as telas de Sofonisba Anguissola, de Artemísia Gentileschi: chegarei perto, agradecerei baixinho. A vontade de ver de perto o jardim das delícias de Bosch. A vontade de reencontrar o amor que não foi vivido. As vontades imensas que não vão se realizar. Os desejos imensos quando se
realizam. Observar a ação dos mestres de Cavalo-marinho*. Mergulhar no mar quente e turvo de Itamaracá. Sentir o ardor revolucionário.
LOFF Você pode falar sobre os seus projetos futuros? CM Neste exato momento estou finalizando uma obra para o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, que felizmente está com reabertura agendada para janeiro de 2021. A obra é um objeto que criei, e vai fazer parte de um percurso tátil dentro da exposição principal do Museu, junto com o trabalho de outros nove artistas. Também estou às vésperas do lançamento de um livro de poesias em que participo com um tríptico de desenhos, um pouco como se esses desenhos fossem um poema. Este é um entendimento do desenho que quero experimentar mais: dizer que os desenhos são poemas, sugerir que sejam vistos dessa forma, colocá-los dentro de livros. Neste livro que vamos lançar, “O poema se chama política”, estou ao lado de poetas contemporâneas que admiro, como Adelaide Ivánova, Bell Puã, Maré de Matos, Julya Vasconcelos, Luna Vitrolira e do grande Miró da Muribeca. Também estou às vésperas de experimentar um tipo de exposição coletiva on-line, que intitulamos “Enxertia”, reunindo 21 artistas em parceria com a galeria Amparo 60 e com curadoria de Ariana Nuala.
LOFF O que espera do futuro?
CM Sendo artista neste Brasil, não há outra opção de futuro que não seja um futuro de organização, resistência. Teremos que resistir na possibilidade de continuarmos criando e livres e para que outras pessoas possam criar e que sejam livres também. E, por incrível que pareça, temos algumas esperanças para nos encorajar. Por exemplo, há um processo de mudança nas instituições e no mercado da arte aumentando a visibilidade e os espaços para o desenvolvimento dos trabalhos de artistas, produtoras, pensadoras e curadoras negras, transgêneros, periféricas, indígenas, nordestinas. Também tenho observado que as redes colaborativas entre artistas estão crescendo, estamos experimentando mais de parcerias, trocas, agrupamentos, partilhas. Espero que estejamos fortes para trabalharmos nisso, é o que espero do futuro.
LOFF Quem são os jovens talentos que merecem atenção? CM Gosto muito do trabalho de Abiniel Nascimento (Carpina, 1996), um artista bem jovem que vem da zona da mata pernambucana. Ele desenvolve uma pesquisa muito sensível sobre geografia, paisagem, origens dessa terra e do seu corpo, experimentando imagens “para uma visualidade cabocla”, como ele mesmo aponta, através da performance, da fotografia e da escrita. Também ando bem encantada pelo trabalho de Ariana Nuala (Recife 1993), uma jovem curadora, educadora e artista. Ela está envolvida em várias situações de ações coletivas, formativas, é uma articuladora, está em movimento, transportando informações, conectando ações.
LOFF Qual seria o seu conselho para o Brasil? CM Ouça as artistas, as poetas e as cientistas. * Cavalo-marinho é um folguedo popular pernambucano