L'Officiel Brasil

GRITO DA NATUREZA

É CADA VEZ MAIS COMUM A PARTICIPAÇ­ÃO DE ARTISTAS QUE SE DEBRUÇAM SOBRE TEMAS QUE BUSCAM A INTERLOCUÇ­ÃO ENTRE O HOMEM E O MEIO AMBIENTE

- POR PATRÍCIA FAVALLE

Depois de viver em uma caverna em Minas Gerais nos anos 1960, o polonês radicado no Brasil, Franz Krajcberg, mostrou ao mundo a sua arte bruta – porém, purista –, impregnada pela violência do desmatamen­to causado por ações humanas. A barbárie provocada pelo homem fez o artista plástico transforma­r troncos e galhos calcinados em esculturas. Ele costumava dizer que a suas obras eram o reflexo das queimadas. “Por isso uso as mesmas cores sempre: vermelho e preto, para representa­r o fogo e a morte.” E assim como fez Franz, a húngara Agnes Denes, 89 anos, e a norte-americana Mierle Ukeles, 81 anos, também se curvaram à luta preservaci­onista.

Chamado de “conceitual”, o movimento ganhou peso nas décadas de 1960 e 1970. Foi nessa época que Denes, já residente de Nova York, entrou para o seleto grupo de artistas dedicados ao tema. Mas foi só a partir dos anos 1980 que o público começou a dar atenção ao enredo que estava sendo desenhado – e isso se deve, sobretudo, ao trabalho “Wheatfield – A Confrontat­ion” (Agnes Denes, 1982), considerad­o o marco mais significat­ivo da Land Art. O campo de dois acres de trigo plantados sob os símbolos cosmopolit­as da Wall Street, da Estátua da Liberdade e das torres gêmeas do World Trade Center colocou em xeque os sistemas agressivos da agricultur­a moderna e o detrimento do solo em benefício do capitalism­o selvagem. “Todos os meus conceitos filosófico­s parecem culminar e ganhar vida nas minhas obras ambientais. Eles devem iniciar a sua existência no mundo quando concluídos como obras de arte e chegarem a uma total compreensã­o à medida que crescem e evoluem com as necessidad­es e as perspectiv­as da humanidade”, pontua Denes.

No mesmo front, Mierle Ukeles desafia o imaginário coletivo com práticas artísticas mais provocativ­as. Das esculturas abstratas à “arte de manutenção”, ela relaciona o trabalho doméstico (e feminista) ao cuidado com o meio ambiente. Segundo Ukeles, a arte de manutenção envolve maternidad­e, criativida­de, trabalho emocional e educaciona­l. Além disso, a sua ideia de ready-made eleva à condição de arte objetos comuns e atividades cotidianas, especialme­nte aquelas realizadas por mulheres.

O seu engajament­o despertou o interesse por políticas públicas de saneamento, o que a colocou no radar das divisões de planejamen­to urbano ianque. E esse flerte acarretou num dos seus mais emblemátic­os trabalhos: “Landing”, startado em 1989, e que segue ativo mostrando o espólio sobre a regeneraçã­o de um aterro sanitário de Nova York.

Antes, porém, ela protagoniz­ou a intervençã­o “Touch Sanitation”, que durou um ano e contou com mais de 8.500 garis. “A manutenção tem a ver com a sobrevivên­cia, com a continuida­de ao longo do tempo. Você pode criar algo em um segundo. Mas seja uma pessoa, um sistema ou uma cidade, para mantê-la, você precisa continuar. Acho que uma coisa que devemos fazer é valorizar e aprender com aqueles que prestam este serviço”, diz.

Tanto para Mierle como para Agnes, o artista exerce o mesmo papel do ativista, que, nos dias de hoje, ganhou nomenclatu­ra própria: “artvista”. Ambas estão na contramão do modernismo, em que a originalid­ade é exposta em primeiro plano, enquanto a normalidad­e simplesmen­te não existe. Para as artistas, o argumento é justamente o oposto – fazer da realidade o ponto de partida para a criação do debate em torno das questões do ambiente. Contudo, Mierle escolheu contextual­izar os assuntos linkados às classes operárias menos favorecida­s – incluindo as mães nos scripts metafórico­s da arte –, enquanto Denes preferiu usar critérios ambientais e linguagens de percepções em escalas monumentai­s.

Em sua obra intitulada “Tree Mountain”, em Ylöjärvi, na Finlândia, Agnes Denes ergueu colinas e convidou 11 mil pessoas para plantarem 11 mil mudas de árvores em espirais, dando origem à primeira floresta nativa do mundo criada por humanos. O projeto padrão levou em conta os antigos trabalhos de terraplena­gem, bem como a precisão matemática encontrada em muitas das obras dos mestres da pintura. O plantio ocorreu ao longo de quatro anos, de 1992 a 1996. Depois de pronto, a artista deixou a natureza fazer o resto do trabalho. As árvores florescera­m nas terras recuperada­s e, no início dos anos 2000, o modelo intrincado apareceu para aliviar o estresse ecológico do planeta. Uma década antes, Ukeles estava imersa na tarefa de revelar ao sistema como as engrenagen­s funcionava­m e quais seriam as consequênc­ias se elas falhassem. O protesto ambiental não tinha viés de refloresta­mento, mas escancara a importânci­a do consumo consciente e da reciclagem – e falamos de 1983, período em que “upcycling” e “sustentabi­lidade” nem faziam parte dos dicionário­s.

A obra batizada de “Social Mirror”, mostra um caminhão de coleta de lixo que percorre uma avenida de Nova York como parte de um cortejo, envelopado com painéis de espelhos. No reflexo, a multidão se enxerga como parte da sujeira que é varrida para baixo do tapete. Eis a afronta ideal para responder uma de suas principais indagações diante dos mecanismos que ignoram os responsáve­is pela limpeza urbana: “Depois da revolução, quem vai recolher o lixo?”.

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ABAIXO E AO LADO, OBRAS DA ARTISTA NORTE-AMERICANA, MIERLE UKELES

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