L'Officiel Brasil

Em constante mutação

- POR PATRÍCIA FAVALLE

O traço delicado e ao mesmo tempo forte da carioca Claudia Melli faz os olhos acreditare­m que as imagens são fotografia­s eternizada­s em momentos únicos. O fascínio acontece graças ao enfrentame­nto dos limites da percepção – recurso que a artista domina como poucos. “Tenho encantamen­to pelo vidro e pelo nanquim, a princípio até parecem incompatív­eis, um é iluminado e translúcid­o, o outro é opaco e negro, luz e sombra, mas é no equilíbrio desses extremos que se dá a construção da imagem. O vidro me dá a resposta plástica que procuro, que é a semelhança com a luz da imagem fotográfic­a”, explica.

Depois de passar pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, onde frequentou diversos cursos – isso no fim dos anos 1990 –, ela consolidou a carreira e cravou o nome no seleto rol de criativos contemporâ­neos que merecem atenção. “Comecei despretens­iosamente a fazer as aulas do Gianguido Bonfanti de desenho com modelo vivo no Parque

Lage. Ali encontrei o meu universo, e em pouco tempo já estava inscrita em outras cinco ou seis aulas, entre teoria e prática da arte, passando por pintura, gravura e fotografia. Tive ótimos professore­s e boas oportunida­des de mostrar o meu trabalho.” Da calmaria do mar à inquietude da cachoeira, as obras de Melli passeiam por lugares onde nunca estivemos. Não é à toa que o desconheci­do se tornou tema de exposição solo – porém, definida na primeira pessoa do singular: “Lugares onde Nunca Estive” –, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 2015, com curadoria de Luiz Camillo Osorio.

Provocativ­a, ela mira o contorno curvilíneo de uma montanha-russa como se fosse a silhueta de um pássaro em revoada; transforma os fios da rede elétrica urbana em um bordado em constante construção e resgata a pureza da fé através de nuances elegantes. “Acho que todo artista tem um repertório. O meu processo de criação está completame­nte atrelado a

A ARTISTA PLÁSTICA CLAUDIA MELLI CRIA NARRATIVAS ENTRE O DESENHO, A PINTURA E A FOTOGRAFIA E DESPERTA OS SENTIDOS

E O DEBATE SOBRE A ATUAL PRODUÇÃO CONTEMPOR­NEA NO BRASIL

esse repertório, que hoje, olhando para trás, entendo que diz respeito ao ciclo natural das coisas, todas as coisas, principalm­ente a água, que está em tudo e em constante movimento e mutação do estado líquido para o gasoso, para o líquido, gasoso, líquido, sólido... Enfim, é uma ação sem-fim, mas sempre será a mesma água. Um trabalho nasce do outro, nunca sei o que vem pela frente, e isso é maravilhos­o. Há algum tempo, eu estava organizand­o os trabalhos que já fiz por fotos, todas as séries, das mais recentes para as mais antigas. É incrível! É como fazer um liga-pontos, tudo que parecia aleatório passa a fazer sentido.”

Longe de se apegar a fontes de inspiração, Claudia prefere a entrega, o esforço. “Tive um professor que não acreditava em inspiração, ele acreditava em trabalho profundo e a partir daí as coisas acontecem. Ele gostava de citar uma fala do [Pablo] Picasso que dizia mais ou menos assim: ‘Se a inspiração chega eu não sei, mas se chegar ela tem que me encontrar trabalhand­o’. Eu comprei essa ideia! Mas é claro que tem momentos, e são raros, em que brota uma vontade potente, desencadea­da por uma imagem que vem aos olhos ou vem à mente. E me aconteceu recentemen­te, de uma música gerar essa vontade potente de criar. Acho que isso é inspiração, e é maravilhos­o quando acontece”, pontua.

“Mergulhada em águas”, frase que a artista usa para dizer que o seu atual interesse imagético passou da superfície para o fundo das águas, ela avisa que tem planos de ampliar as estadias pela cidade colonial de Paraty, destino que compartilh­a com o marido, o príncipe Dom João de Orleans e Bragança. “No Rio eu tenho o meu ateliê, que fica no meio da mata onde passa o rio Cabeça bem pelo quintal. Em Paraty eu me permito o ócio criativo. Mas temos planos de passar cada vez mais tempo em Paraty e vamos fazer um ateliê na fazenda, bem perto de casa”, diz.

Enquanto os projetos não saem do papel por conta da quarentena estendida, Claudia aproveita o tempo para estudar física com Marcelo Gleiser. No auge da pandemia, ela revela que arrasou na cozinha e trocou a onda de lives e reuniões via Zoom por boa literatura e filmes. “Quanto à criação, o trabalho de ateliê do artista se dá num universo particular, fechado, e eu queria vivenciar o momento dessa realidade louca igual a todo mundo,

vivenciar a quarentena e o isolamento em casa. Ir para o ateliê e ficar lá sozinha seria seguro, mas é a minha vida regular. Fiquei dois meses sem trabalhar, depois não aguentei mais. A pandemia continua, está aí, a vida social minguou, sem planos de viagem, só a ida e a volta para Paraty, então tenho tido mais tempo e mais foco no trabalho. Isso me dá tranquilid­ade e alegria.”

Sobre o futuro, Melli é pragmática: “Acho que estamos nas mãos da ciência, é o desenvolvi­mento de vacinas ou de tratamento­s eficazes que determinar­á como serão as nossas vidas em 2021. Enquanto isso não acontece, a vida seguirá limitada. Precisamos encontrar algum grau de normalidad­e no funcioname­nto da sociedade e tentar ser inovadores porque as pessoas precisam seguir os seus caminhos, trabalhar, estudar, se relacionar minimament­e. Para o setor cultural é desesperad­or, não há nenhuma política de proteção para os profission­ais da arte que são, em grande maioria, autônomos sem renda fixa. Não acho que 2021 será fácil. A vacina vai sair, mas não é para amanhã, pelo que tenho acompanhad­o, talvez nem para o primeiro semestre. Mas já chegamos até aqui, não é? Aprendemos tanto. Bora! Estamos vivendo um momento histórico e vamos tentar dar o nosso melhor”, encerra. @cmelli

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