Mergulho Amazônico
Abundante, misteriosa, arrebatadora, mágica... É difícil escrever sobre a Amazônia sem abusar dos adjetivos. Passar uns dias na maior floresta tropical do mundo é mesmo uma inesquecível experiência de vida
Com área total de 5.500.000 quilômetros quadrados – 60% dos quais localizados em território brasileiro –, a Amazônia é uma terra cheia de mistérios e lendas, uma floresta gigantesca que compreende a maior biodiversidade do planeta. No Amazonas, além da capital Manaus, apenas pequenas cidades e comunidades indígenas povoam as margens dos inúmeros rios e afluentes. O melhor jeito de explorar essa deslumbrante imensidão verde é, portanto, navegando ao lado de quem a conhece bem. Para embarcar nessa aventura, escolhi a Expedição Katerre (katerre.com). Feito de madeira de lei e com acabamentos em teçume de fibras naturais, o barco Jacaré-açu insere-se completamente na paisagem, não destoando das embarcações que circulam pelas águas amazônicas. Ao mesmo tempo, oferece comodidades como ar-condicionado nas cabines, sala com projetor de filmes e um deque com redes para curtir as paisagens. Mas internet não há. Nem banho quente. Abrir mão de pequenos luxos é o que permite a entrega a uma intensa conexão consigo mesmo e com a floresta.
Katerre, a propósito, significa “tudo bem” na língua Yanomami. Nada mais apropriado. O Jacaré-açu tem 64 pés e possui quatro cabines duplas, com beliches no primeiro andar, e quatro cabines de casal, dispostas no segundo andar. Este foi o último barco projetado no estaleiro de Novo Airão (agora todos o modelos são feitos de metal e não mais de madeira).
Antes de começar a expedição, no píer do antigo Hotel Tropical, há um briefing feito pelo guia – no meu caso, quem se encarregou da trip foi o Josué, que deu uma aula sobre a fauna e a flora locais, assim como detalhou todas as etapas da viagem, bem como os horários das refeições e as informações técnicas da embarcação. Durante quatro dias, navegamos mansamente pelo Baixo Rio Negro. A empreitada começa pelas águas do Rio Solimões. No Lago January, observamos botos e aves como garças, araras-canindé e socós. Depois foi a vez de ver o encontro das águas, onde Rio Negro e Rio Solimões correm lado a lado por mais de 9 quilômetros. Ao longo do caminho, vemos a água barrenta do Solimões e a água escura do Negro correndo sem se misturar, devido às velocidades, temperaturas e níveis de acidez diferentes (aqui vale um adendo: a acidez da água dá um chega pra lá nos mosquitos). No encontro, embarcamos nas pe
quenas voadeiras em que temos a oportunidade de tocar as águas. Pouco povoado, o Negro tem menos trânsito de barcos e águas mais tranquilas. E é pelo seu leito que continuamos o trajeto, seguindo em direção a Anavilhanas, um dos maiores arquipélagos fluviais do mundo.
Entre diversas experiências, uma das mais espetaculares é mergulhar juntinho do famoso boto corde-rosa. Parente das baleias e dos golfinhos, os botos habitam as margens do Rio Negro e seus afluentes. Os machos podem chegar a 2,5 metros de comprimento, pesar até 200 quilos. Logo na sequência, como se não fosse emoção suficiente, avistamos o pirarucu, o maior peixe de escamas do globo, também conhecido como o “leão da Amazônia”. De voadeira, pequenos barcos usados para os passeios, também pescamos piranhas – que, posteriormente, se transformariam no jantar. Basta jogar a isca, que elas aparecem. Ao sentir um puxão mais forte, recolha rapidamente a linha e se ela não for mais esperta do que você – piranhas são hábeis em roubar a isca –, lá estará o seu peixinho. No decorrer do caminho, somos contemplados com preguiças, macacos e aves nativas da região, que cruzavam delicadamente o céu.
No mesmo dia, a focagem noturna de jacarés injeta uma dose de adrenalina ao cardápio. Enquanto navegamos em meio a uma escuridão profunda, os guias apontam lanternas para as margens. O objetivo é ver os répteis – três espécies diferentes habitam aquelas bandas: jacaré-açu, jacaré-tinga e jacaré-pedra.
Outro ponto alto é o trekking de duas horas em meio à floresta primária, para apreciar a natureza da terra firme. É o momento ideal para conhecer plantas medicinais, aprender técnicas de sobrevivência na selva e descobrir como usar as formigas como repelente natural – o cheiro delas camufla o odor do corpo humano. Descobrimos que tudo o que precisamos para resistir está ali, na selva.
E como uma viagem não é completa sem conhecer o povo local, há também visitas às comunidades indígenas. Tive a possibilidade de ver de perto uma aldeia da etnia Tatuyo, onde fui apresentada aos rituais e pude conhecer sobre o modo de vida deles. Já na comunidade Tiririca, estive numa casa de farinha e conferi o pomar de frutas regionais, além de testemunhar a alegria que essas pessoas sentem ao receber os “forasteiros”. Oferecer turismo de base comunitária, ou seja, incluir a população local nas atividades de ecoturismo, é uma das premissas da Katerre. E são esses momentos de contato com os locais que torna a viagem ainda mais transformadora.
Entre uma aventura e outra, o melhor é curtir a paisagem do deque outdoor do Jacaré-açu, muitas vezes com uma dose de caipirinha em mãos. A brisa refresca o corpo. Ali é também o melhor lugar para ver o sol nascer, ser presenteado com esplêndidas revoadas de pássaros e observar as estrelas quando cai a noite.
NA PÁGINA DE ABERTURA, JACARÉ-AÇU DESLIZANDO SOBRE O RIO NEGRO. NA SEQUÊNCIA, PISCINA DO HOTEL JUMA ÓPERA COM VISTA PRIVILEGIADA PARA O TEATRO AMAZONAS. NESTA PÁGINA, ACIMA, SALA DE ESTAR DO JACARÉ-AÇU, E NA SEQUÊNCIA, CURIOSOS MACACOS ESQUILO, VISITA A ALDEIA DE ETNIA TATUYO, O DELICADO TRABALHO DE MARCHETARIA DESENVOLVIDO POR ARTESÃOS DA FUNDAÇÃO ALMERINDA MALAQUIAS E INTERAÇÃO COM BOTOS COR-DE-ROSA EM FLUTUANTE NO RIO NEGRO
A propósito, prefira mergulhar nas águas do Negro após o nascer do sol. Fui surpreendida mais de uma vez por botos que nadavam ao meu lado ou simplesmente me observavam de longe, no stand up foi onde eles mais se aproximaram. Já a gastronomia amazônica merece um capítulo à parte. Alguns dos peixes mais saborosos do mundo nadam naquelas águas. Lá descobri que o peixe tem o sabor daquilo que ele come. O pacu, por exemplo, alimenta-se de plantas e coquinhos, por isso, tem consistência mais oleosa. O tucunaré e o pirarucu comem peixes carnívoros e herbívoros, o que confere a essas espécies um sabor forte. E o bagre tem gosto mais terroso, devido à sua alimentação no fundo do rio. Para conferir as receitas e pegar dicas de preparo, basta dar uma passada na cozinha e bater um papo com as chefs da expedição, todas elas moradoras da região e sempre dispostas a compartilhar os ensinamentos. E não se preocupe com horários: assim que as refeições estão prontas, a tripulação toca um sino para avisar aos passageiros. Nos intervalos, há frutas frescas à disposição no primeiro andar do barco. Isso, sim, é luxo.
Mas, veja bem, gigante e dona das suas próprias vontades, a floresta – e toda a vida que pulsa dentro dela – é quem dita o ritmo da excursão. Apesar de termos uma programação, é o rio que manda nas atividades. Nós, pequenos seres humanos, ficamos à mercê. E muitas vezes são necessárias fazer as adaptações no roteiro para adequar os imprevistos meteorológicos. É importante dizer também que há duas “Amazônias” diferentes: a da cheia e a da seca.
Na da cheia, desbravamos a Amazônia em canoas através dos igarapés, canais estreitos formados nos braços dos rios, e temos mais chances de observar os animais. Já na seca, o programa segue nas praias que se formam entre as paredes verdes de árvores.
As fotos que acompanham este texto foram feitas em novembro, durante a seca, quando podemos observar faixas de areia fina e branca. Durante as cheias, que vão de dezembro a junho, o nível da água sobe praticamente ao topo da copa das árvores. É nessa época que as pequenas embarcações, as canoas, conseguem entrar nos igarapés, pequenos cursos d’água dentro da mata, permitindo que o turista veja de pertinho seringueiras, tarumãs e outras árvores locais.
A expedição termina no delicioso restaurante Flor doluar,emnovoairão,deondeseguimosparaterrafirme. Para uma experiência completa, acrescente ao roteiro algumas noites no Mirante do Gavião (mirantedogaviao. com.br), o lodge em frente ao Parque Nacional de Anavilhanas, inaugurado em 2014, que abriga 12 bangalôs construídos de madeira de lei (reaproveitada), que remetem à forma de barcos invertidos, conectados por passarelas e totalmente integrados à natureza. Em frente a minha porta, uma mangueira me oferecia frutos como um sinal de boas-vindas. Hora de se deslumbrar com o décor que inspira todos os sentidos incorporando os materiais da floresta, revestimentos de teçume de fibras, mobiliários de madeira natural com detalhes de marchetaria e cestarias e peças do artesanato regional, muitos deles criados por profissionais da Fundação Almerinda Malaquitas, ONG da qual Ruy Carlos Tone, proprietário do hotel, é patrono e apoia. O projeto sustentável é assinado pelo ateliê O’reilly e conversa divinamente com o paisagismo delicado do Studio Clarice Lima, cujas construções têm pisos elevados preservando a permeabilidade do solo, iluminação e ventilação naturais, energia solar e
direcionamento de todos os resíduos orgânicos para compostagem. Já o paisagismo foi inspirado na expedição realizada pela botanista britânica Margaret Mee, realizada na década de 1960.
Após uma relaxante massagem nada como se deliciar com o menu do restaurante ao lado da piscina, Camu-camu, assinado pela chef Deborah Shornik, que utiliza ingredientes nativos em uma imersão profunda. Qual é a melhor vista do nascer do sol? Em um de seus três mirantes, sempre em companhia de gaviões, que dançam ao lado dos hóspedes como se estivessem apresentando sua morada. Dali é possível voltar de avião para Manaus – a Rico Táxi Aéreo faz o trajeto (voerico.com. br). É a oportunidade para ver de cima toda a extensão da floresta e se despedir com a experiência completa, terra, água e ar. Compõem a frota aeronaves supermodernas, que contam com equipamentos anfíbios, capazes de pousar em todos os rios da Amazônia, e modernos jatos para acessar qualquer ponto do país. Com mais de 50 anos de operação, a empresa possui equipe de pilotos treinados segundo todas as normas da Anac, time de mecânicos de alto nível e hangar próprio no aeroporto internacional de Manaus. Também vale a pena fazer um pit-stop na capital manauara antes ou depois do tour na selva. Além do clássico e imperdível Teatro Amazonas
(confira a programação antes de viajar), não perca a Banca do Joaquim, ali pertinho, que tem uma completíssima coletânea de literatura amazônica. No Centro de Medicina Indígena Bahserikowi’i, locais e turistas beneficiam-se da sabedoria indígena. O atendimento é feito por um kumu, ou simplesmente pajé, especialista no Bahsese, um conjunto de procedimentos para tratar as doenças.
Para aplacar a fome, rume para o restaurante Caxiri, também comandado pela chef Deborah Shornik, que explora de maneira criativa a culinária regional. Sempre à procura de ingredientes únicos e sabores novos, ela monta menus surpreendentes até mesmo para os paladares mais experientes. As trouxinhas de pato com caldo de tucupi proporcionam uma explosão sensorial nas papilas gustativas.
E o novo hotel butique Juma Ópera (jumaopera.com.br) situa-se bem no Centro e é perfeito para descansar admirando o imponente Teatro. Além das 41 acomodações construídas em dois casarões tombados e reformados, há um incrível rooftop com piscina, perfeito para relaxar com um drinque na mão após um inesquecível mergulho na maior floresta do mundo. O Ópera restaurante, com o renomado cardápio assinado pela chef Sofia Bendalack, dentro de uma cúpula de vidro e ferro, fecha o destino com chave de ouro.