Total sintonia
Duas exposições em cartaz em
São Paulo jogam luz sobre a importância do fazer manual para manifestações estéticas e políticas.
Quando se casou com Oswald de Andrade, em 1926, Tarsila do Amaral já era uma das brasileiras mais íntimas (e consumidoras) da moda francesa da época. Tanto que no famoso autorretrato Manteau Rouge, concluído três anos antes, quando a pintora ainda morava em Paris, ela aparece usando um casaco com maxigolas assinado pelo couturier Jean Patou. Mas, para a cerimônia de casamento, recorreu a Paul Poiret, amigo e estilista favorito. Foi ele que adaptou a cauda do vestido da mãe de Oswald para construir o traje usado pela noiva modernista.
Corta para 2021. Partes do look que sobreviveram ao tempo saem do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo para ser exibidas pela primeira vez na exposição A Arte da Moda – Histórias Criativas, em cartaz no Farol Santander até 4 de abril. A mostra, com curadoria de Giselle Padoin, propõe-se a analisar e expor didaticamente a trajetória da moda e suas relações com o fazer artístico no último século. De olho em um público curioso e pouco insider dos meandros da indústria, Giselle reuniu momentos singulares que se perderam na memória – como imagens do desfile de Christian Dior no Masp ou os acessórios criados por Yves Saint Laurent e produzidos no país por Rose Benedetti 50 anos atrás. Esta é também mais uma chance de analisar a coleção patrocinada pela Rhodia nas décadas de 1960 e 1970, com roupas criadas por duplas de estilistas e artistas plásticos essenciais daquele tempo.
Mas é nos meandros do fazer manual que a curadoria ganha maior interesse, seja nas imagens feitas pelo fotógrafo francês Gérard Uféras nos bastidores dos ateliês da Dior (que também emprestou três looks de alta-costura para a exibição), seja nos bordados da paranaense Fernanda Nadal ou no trabalho de confecção manual de Muquém – projeto tocado por Renato Imbroisi, que aproveitou a cultura centenária dos teares daquela região de
Minas Gerais para a criação de tecidos a partir de resíduos têxteis; o resultado alimentou uma coleção da marca Sissa, que pode ser vista de perto por ali.
Com esses detalhes, a mostra ajuda a provar que, apesar da força das revoluções tecnológicas, o trabalho poderoso do feito a mão ainda seduz imensamente e mantém um enorme valor agregado na produção da criação estética e no registro social. Esse pensamento ganha ligação com outra exibição, Transbordar: Transgressões do Bordado na Arte, montada no Sesc Pinheiros até 8 de maio.
Por lá, a moda é secundária e serve de suporte. A ótima curadoria de Ana Paula Cavalcanti Simioni reuniu obras de 39 artistas para mostrar como o bordado se tornou, ao mesmo tempo, uma arte sensível e de conotação política fortíssima. Um fazer artístico que sobreviveu tanto tempo sendo relegado a “arte menor” e foi resgatado com a crescente manifestação da presença feminina na arte – gerando identificação também com produções que discutem questões LGBTQIA+. Ali podemos perceber as conexões entre obras como as de Bispo do Rosário ou a técnica das arpilleras, que ajudavam mulheres a denunciar abusos da ditadura de Augusto Pinochet no Chile, passando pela moda-protesto de Zuzu Angel e pelos trabalhos de artistas contemporâneos, incluindo Nazareno Rodrigues, Fabio Carvalho e Nazareth Pacheco.