Reação e resistência
Indo contra os estereótipos sobre criação indígena, Day Molina usa sua presença para desconstruir preconceitos e brigar pela inclusão dos seus, por meio da moda.
Day Molina é uma dessas figuras que surgem, de tempos em tempos, para dar um safanão nos alicerces. Criadora de imagens e de roupas, através de sua marca, Nalimo, ela usa sua vivência como mulher indígena para se colocar como disseminadora de acessos e fomentadora de discussões urgentes. Como toda pessoa de raízes ligadas a povos originários, suas questões carregam uma carga de séculos de preconceito e exclusão social – assuntos para os quais ela tem reunido forças para combater durante sua vida e, especialmente, nos últimos 12 anos de uma carreira que se tornou um ato de resistência.
“A vida das mulheres indígenas sempre esteve sob ameaça de violação de seus corpos e seus espíritos. Nós precisamos falar sobre as estruturas que alimentam isso”, define a estilista de 32 anos sobre sua luta, que tem o objetivo tanto de ser antirracista quanto de elevar o entendimento coletivo de pessoas indígenas, que tiveram a moral soterrada pela sociedade desde a colonização. “Falar de nossa identidade no Brasil ainda é um processo muito traumático. Mas a gente precisa ter força para continuar e fazer diferença em nosso meio.”
De família migrada à força do sertão de Pernambuco para o Rio de Janeiro, Day se descobriu na moda no meio do caminho da realização do sonho de ser socióloga. Depois de trabalhar em um ateliê de figurinos, o que fez acender a fagulha da criação, ela se jogou com coragem atrás de uma nova vida na Argentina, onde foi acolhida por Aldo Bressi, fotógrafo italiano radicado em Buenos Aires – um dos primeiros a acreditar na vontade ferrenha da jovem. Por lá, refinou olhares e aprendeu os meandros de produção de imagem de moda enquanto construía uma rede de contatos latinoamericanos por meio de seu trabalho como stylist.
Já de volta ao Rio, quatro anos atrás, criou a Nalimo, também como uma forma de expressar seus pontos de vista e incentivar mudanças essenciais no que o mercado entende como “imagem indígena”. “Não estou fazendo a moda estereotipada do que se acredita ser uma moda indígena, de cocares e roupa cheia de pinturas”, afirma sobre sua criação, que é baseada em peças minimalistas em preto e branco e cinza, de tecidos naturais e sem desperdício de matéria-prima, tudo 100% feito por ela. “Eu tenho um olhar contemporâneo, mas sem esquecer por que estou ali. Crio usando os valores que aprendi em casa, que nos são importantíssimos.
Estão altamente conectados com o modo indígena, com a cosmovisão, com o estilo de vida.”
Entrando recentemente no holofote mainstream da moda, Day fez duas apresentações poderosas no fim de 2020 – um desfile no Brasil Eco Fashion Week e um vídeo catártico sobre corpos excluídos na Casa de Criadores: “Era sobre tudo aquilo que é invisibilizado pela sociedade branca, e eu incluo aí o corpo nordestino, o corpo trans e tantos outros. Não é para romantizar sofrimento, mas garantir que essas vozes sejam ecoadas”.
Com o lema de que “visibilidade é poder” na sociedade, essas apresentações resumem também outro lado do trabalho da estilista, pela inclusão de discussões e abertura de portas. Day tem usado sua presença no mundo como radar para reunir outras pessoas criativas de origem nativa e fazer com que elas sejam enxergadas pelo mercado, nem que seja à força – um movimento que começou com um hashtag de Instagram e que, assim que possível, deve ganhar corpo físico. “Vamos fazer um projeto itinerante para levar esse conhecimento de moda por meio de workshops para dentro das aldeias”, conta.
A vontade é descobrir esses talentos escondidos, invisibilizados pela sociedade por ter oportunidades cerradas a eles, mas também produzir consciências. “É importante que elas se olhem e tenham percepção da luta que enfrentam. Estou formando ativistas, que já entram na moda entendendo que a gente precisa lutar para sobreviver”, diz. “Nós somos livres e podemos criar nosso mundo ideal, não viver naquele mundo que as pessoas pensam ser o ideal para a gente.”