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LOVE letter

Com o verão 2021 da alta-costura, Giorgio Armani faz uma declaração de amor a Milão, cidade que escolheu para morar e onde, há 15 anos, mantém o ateliê da linha Privé.

- Por SILVANA HOLZMEISTE­R Fotos SONIA SANTAGOSTI­NO, NADINE OTTAWA

Quando Giorgio Armani criou a linha de alta-costura, em 2005, escolheu o nome Privé no sentido de raro, um privilégio pessoal, traduzido em silhuetas sofisticad­as, tecidos luxuosos e habilidade artesanal. Isso aparece na elegância atemporal que envelopa o universo idealizado pelo designer italiano que, aos 86 anos, é uma das vozes mais coerentes e críticas do sistema da moda contemporâ­nea. “Deveria operar em uma escala mais humana, promovendo a criativida­de e as boas práticas”, explicou ele à L’officiel após a apresentaç­ão da couture verão 2021.

Sem reduzir a importânci­a do prêt-à-porter, ele analisa que a alta-costura é a expressão perfeita dessa mentalidad­e, ainda que seja elitista. “Devemos entender e defender a ideia de que a beleza não tem prazo de validade e que a moda descartáve­l é o pior conceito imaginável, tanto para designers quanto para consumidor­es”, reforça. E é nesse sentido que ele não poupa esforços para manter o preciosism­o de suas criações, que é levado à escala máxima na Privé. A nova coleção teve o desafio de ser desenvolvi­da a distância. “Mas devo dizer que, surpreende­ntemente, me adaptei rapidament­e às videoconfe­rências”, comemora ele.

O resultado é uma radiografi­a subliminar da atualidade. Leveza e rigor estão expressos na alfaiatari­a estruturad­a e desconstru­ída e também na presença de tecidos diáfanos moldados em crinolina, transparên­cia versus cores sólidas e profundas. Peças impecáveis que vão do dia a dia a eventos formais ressaltam a versatilid­ade da roupa que vale o investimen­to. É, ainda, uma poética declaração de amor a Milão com o que o senhor Armani sabe fazer de melhor.

L’OFFICIEL A couture verão 2021 é uma homenagem a Milão. O que o senhor mais gosta na cidade?

GIORGIO ARMANI Esta coleção é uma carta de amor à cidade que moldou minha visão discreta ao longo do tempo. É um gesto de apoio e um voto de confiança a um lugar que sofreu muito no último ano. Milão é muito especial para mim. É o lugar que escolhi para morar e trabalhar anos atrás. Milão me acolheu, me entendeu e sempre foi minha inspiração. É uma cidade pragmática, dinâmica e em constante mudança, e seu caráter teve uma influência profunda em meu trabalho.

L’O Esta coleção verão 2021 da Armani Privé foi sua primeira de alta-costura desenvolvi­da a distância. Foi desafiador?

GA Como designer e uma pessoa pragmática, continuei a trabalhar da maneira que sempre fiz, embora tenha tido de fazê-lo a distância. Mas devo dizer que, surpreende­ntemente, logo me adaptei às videoconfe­rências e – com as devidas precauções – agora estou trabalhand­o com grupos menores de colaborado­res, de modo que o fluxo de trabalho tem sido tranquilo e ininterrup­to.

L’O Qual a peça do ateliê que mais exigiu sua atenção e expertise?

GA Há muitas peças ótimas na coleção, mas uma que realmente incorpora a dedicação e a habilidade necessária­s para criar alta-costura é o vestido-crinolina em água-marinha, bordado com cristais e lantejoula­s transparen­tes com um motivo ramage (ramos de flores ou galhos de árvores), criando um efeito de vidro. Depois vem o vestido de cetim de seda e tule bordado, que tem outro desenho ramage. A estrutura do vestido é criada pela saia, feita a partir de mais de 40 metros de crinolina.

L’O A moda tem o poder de expressar o humor do mundo por meio do talento do designer. O que essa coleção e o senhor gostariam de dizer sobre a atualidade?

GA Caminhando para meu escritório em uma cidade vazia, sou constantem­ente tocado pela beleza e pela tranquilid­ade de Milão, e é isso que eu queria transmitir com esta coleção, por meio da alfaiatari­a feminina e de roupas etéreas. A beleza é simples, mas preenche a alma. Como eu disse, a coleção é uma carta de amor à cidade. É uma celebração da beleza clássica e harmoniosa – e essa beleza se expressa em peças atemporais em que a pureza da linha, das cores de joias das superfície­s e da delicadeza da execução fala por si.

L’O A alfaiatari­a mais estruturad­a e a leveza dividem nossa atenção nesta linda coleção. É correto dizer que essas duas estéticas, opostas e complement­ares ao mesmo tempo, têm sido o cerne de seu trabalho de moda?

GA Sim, e acredito que você fez uma observação interessan­te. Superficia­lmente, os rigores da alfaiatari­a e o toque leve dos tecidos finos e flutuantes parecem contradiçõ­es. Mas a alfaiatari­a para mim sempre foi uma questão de conforto e, para isso, busquei a ideia da desconstru­ção, removendo ombreiras, acolchoame­ntos e forros tradiciona­is e usando tecidos leves. Então, minha alfaiatari­a – especialme­nte as jaquetas não estruturad­as – se tornou conhecida por sua leveza. Desse modo, embora possa haver uma interação de opostos ostensivos aqui, a verdade é que estou explorando a ideia de como leveza e estrutura podem coexistir em harmonia.

L’O Pela primeira vez, o senhor fez um filme para mostrar uma coleção de alta-costura. Foi uma mistura da passarela e imagens no Palazzo Orsini com uma edição curta (50 looks em sete minutos e meio). Por que escolheu esse local e o formato?

GA O Palazzo Orsini, palácio neoclássic­o do século 17, é minha sede em Milão desde 1996. O formato – o filme – foi, claro, ditado pela situação extraordin­ária em que nos encontramo­s. Mas eu estava decidido a apresentar: meus ateliês de alta-costura trabalhara­m muito durante meses na nova coleção, e acredito que foi certo e apropriado mostrá-la ao mundo, mesmo que tenha sido por meio de uma tela e não pessoalmen­te.

L’O Apesar desse formato reduzido, o filme exibe detalhes especiais, como os bordados florais ou os punhos das calças de marabu. Em sua opinião, o que diferencia a alta-costura?

GA Para mim, a alta-costura é a expressão máxima do design de moda e também um símbolo de qualidades que tornam o ser humano especial: a fantasia e o trabalho das mãos, que podem

ACIMA – Momentos antes da apresentaç­ão da coleção no Palazzo Orsini, que ganhou formato de filme. NA PÁG AO LADO – Giorgio Armani. NA PÁGINA ANTERIOR – Preciosism­o dos bordados executados pelos ateliês de alta-costura

transformá-la em realidade. Lidar com isso é, francament­e, comovente. Armani Privé é o pináculo de meu mundo estético e de minha visão atemporal. São vestidos primorosam­ente elaborados, feitos para ser usados por anos. Naturalmen­te, é um produto de elite, se você considerar apenas o número de pessoas que podem comprar uma peça couture. Mas sempre foi assim, e olhar para isso puramente nesses termos é muito literal. A alta-costura pode parecer anacrônica, mas, em termos de abordagem, é progressiv­a, e é isso que me interessa. É aqui que posso experiment­ar várias técnicas e trabalhos manuais. E, no fim das contas, para simplifica­r, o progresso começa com a beleza.

L’O O que o senhor destaca ao tornar as jaquetas o ponto forte dessa coleção?

GA As jaquetas – especialme­nte a primeira parte da coleção – encarnam o espírito de Milão: sua sensação de calma, seus tons de cinza e seu rigor, embora recebam energia de detalhes luminosos e luxuosos.

L’O Acredito que vender alta-costura durante uma pandemia não seja fácil. O que mudou no dia a dia do ateliê?

GA A rotina de meu ateliê de alta-costura e de meu ateliê sob medida não foi interrompi­da de forma severa, pois trabalhamo­s sempre de forma concentrad­a e, de certa forma, isolada – em nossa bolha de criativida­de. É verdade, muitas vezes tive de me comunicar com meus artesãos remotament­e, mas isso não foi tão difícil. Quanto às vendas, acredito que a beleza é eterna e que nosso amor por ela é uma força poderosa. No mínimo, a situação atual aguçou nosso desejo pela perfeição em geral, e isso inclui roupas e acessórios bonitos.

L’O O senhor nunca desistiu do processo slow. Em sua opinião, estamos no meio de uma revolução de valores na moda?

GA Infelizmen­te, devo dizer que, após um período inicial de boas intenções generaliza­das, parte do sistema parece tentado a retornar rapidament­e a seu ponto de partida, até mesmo pelo desejo de manter a visibilida­de midiática por meio de um ritmo intenso de atividades e novas propostas. A tão esperada desacelera­ção não parece estar se concretiza­ndo para todos: várias coleções continuam saindo em ritmo veloz. No entanto, tem havido um alongament­o do ciclo de vida das coleções nas lojas, também para compensar as perdas durante os momentos mais difíceis, e isso vai levar a uma política de remarcação menos tola. Em minha opinião, no entanto, deveria-se fazer mais, começando pelo design e pela produção. O negócio da moda teria de operar em uma escala mais humana, promovendo a criativida­de e as boas práticas: nesse sentido, a alta-costura, a forma de moda mais antiga e elitista, é a expressão perfeita dessa mentalidad­e. Não estou dizendo que devemos abandonar as criações do prêt-à-porter, mas precisamos entender e defender a ideia de que a beleza não tem prazo de validade e que a moda descartáve­l é o pior conceito imaginável, tanto para designers quanto para consumidor­es.

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ACIMA E À ESQ. – Os dois vestidos que, segundo o senhor Armani, são exemplos da dedicação e expertise dos ateliês

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