Espaço desigual
A presença feminina nas semanas de moda brasileiras ainda é muito menor do que deveria. Será que não passou da hora de pensar nesse assunto?
Historicamente, a indústria da moda construiu sua fama em cima de um suposto empoderamento da figura feminina. Seja da costureira que constrói as roupas, seja da modelo que as exibe, chegando finalmente à grande massa consumidora que move o mercado, do luxo ao fast fashion.
Porém, o aplauso final vai para os grandes criadores, que são majoritariamente… homens. Já reparou?
A ficção da equidade de gêneros na indústria criativa é um fenômeno mundial. No cenário das semanas de moda internacionais, estudo recente realizado pelo Business of Fashion apontou que, entre as quatro principais cidades do circuito, apenas 40,2% das marcas mostram coleções criadas por mulheres.
No Brasil, dadas as devidas proporções de mercado e número de apresentações, esse resultado não melhora – mesmo que 75% da mão de obra da indústria seja feminina, segundo a Abit (Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção). Analisando os calendários dos últimos desfiles presenciais pré-pandemia dos três maiores e mais longevos eventos nacionais – SPFW, Casa de Criadores e Dragão Fashion Brasil –, a porcentagem de shows liderados por mulheres (cis ou trans) é de 28,6%. O SPFW é o que se sai melhor na conta; ainda assim, a abertura do calendário para a renovação de nomes nos últimos anos é também dominada pelos homens, em uma proporção de dois para uma (e o número de mulheres transexuais se mantém no zero).
Esse cenário nem sempre foi assim. Das iniciativas dos anos 1980 e 1990, como a do Grupo Mineiro de Moda, até o boom, nos anos 2000, das semanas de moda, a presença feminina era muito maior – e a discussão de equidade de gênero estava longe de ser pauta como é hoje. Na fase áurea do Fashion Rio, elas eram responsáveis por 65% das apresentações. Fica a pergunta: com quase 30 anos de semanas de moda no Brasil, em que momento essa presença se perdeu?
Não é que o interesse delas tenha murchado, muito pelo contrário. Com as novas gerações e o crescimento das faculdades de moda, há muito mais mulheres se formando em criação do que antes – basta olhar qualquer sala de aula para ver que a predominância feminina por lá é de quase 100%. Com as restrições imensas de área de trabalho, o número que chega às vias de fato do mercado é bem menor. Mas não a ponto de justificar essa falta de representação gritante. Ainda mais se pensarmos na quantidade de pequenas e médias etiquetas que surgem com frequência no mercado e que não chegam às passarelas, seja das faixas mais abastadas das faculdades, seja das camadas sociais periféricas que têm ganhado atenção recentemente.
Claro, nem todas precisam de um desfile para chancelar seu negócio – cada vez menos, eu diria. Mas se as semanas de moda ainda são a grande vitrine da indústria, elas têm certa obrigação social de promover e apoiar essa presença de forma mais igualitária.
Conversei com uma série de mulheres do setor, além dos homens responsáveis pelos eventos, para tentar compreender qual é a questão. Naturalmente, essa problemática é uma soma de fatores. Mas, entre estilistas, militantes, consultoras e observadoras, uma observação que aparece com frequência é: falta, sim, uma abertura de espaço concreta.
Assim como na sociedade em geral, a missão dessas mulheres na moda tem sido batalhar dobrado para conquistar espaço, respeito e apoios comerciais. E, mais do que tudo, angariar uma escuta atenta – pois falando elas já estão. Não faltaram histórias de criadoras em busca de patrocínio preteridas por colegas homens no mesmo patamar, descaso de grandes players do mercado e outras manifestações de misoginia estrutural. Ou até o pensamento de que elas preferem (ou são melhores em) trilhar um caminho mais comercial que não cabe em uma passarela “de moda”, deixando para os homens o privilégio de uma criação livre e criativa.
Por outro lado, surgiu muito também a ideia de que elas já estão em outro patamar – usando a esperteza feminina para pensar em questões que já estão além dos holofotes da velha moda, como sustentabilidade, novos formatos de apresentações e métodos de criações mais humanizadas e inclusivas. Pelo sim, pelo não, é fato que as semanas de moda brasileiras deveriam se colocar mais atentas a essas mulheres. Essa discussão está mais do que atrasada; basta querer escutá-la.