O BRILHO DA REPETIÇÃO
Conceição dos Bugres é uma personagem que representa muito sobre a arte e a história brasileiras. De origem indígena, nasceu em 1914 no Rio Grande do Sul, mas se mudou ainda menina para Ponta Porã, na fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai, expulsa pelos conflitos com os colonizadores europeus do começo do século. Foi na capital, Campo Grande, que ela se estabeleceu como uma das escultoras mais importantes – e quase ocultas – da arte brasileira, até morrer, em 1984.
Sua intensa criação escultórica ganha agora mostra especial no Masp, reunindo 136 peças sob curadoria de Amanda Carneiro e Fernando Oliva. Com abertura inicialmente prevista para abril, mas ainda dependente das restrições de quarentena na cidade, a expo inaugura o biênio 2021/2022 no museu com recorte temático para as histórias brasileiras. Neste ano, as exposições dedicam-se apenas a artistas mulheres: além de Conceição, a programação principal inclui as brasileiras Erika Verzutti e Maria Martins mais a fotógrafa alemã radicada em São Paulo Gertrudes Altschul.
De todas, Conceição é a que mais tem ligação com o Brasil profundo. Trabalhadora da roça, tirava da natureza a inspiração de seus bugres – totens de tamanhos variados, que levantam muito da discussão sobre as supostas diferenças entre artes plásticas e a arte popular produzida pelos interiores do país, muitas vezes tratadas como de importância menor. A artista costumava falar que “a madeira é que manda”. Sua produção, conta-se, começou num repente, talhando raízes de mandioca. Logo depois, ela partiu para monoblocos de madeira, que iam sendo escavados com facão e machadinha até darem forma a seus bugres – que não deixam nada a dever a clássicos mais conhecidos da escultura mundial, como o romeno Constantin Brâncuși e o suíço Alberto Giacometti.
Ela não tinha intenção de teorizar imensamente sobre seu fazer artístico, pondo na repetição temática a força de trabalho. Aparentemente idênticas a um olhar desatento, o radicalismo estético das peças de Conceição aparece nos detalhes das esculturas, todas remetendo a sua ascendência indígena, com personalidades distintas. A própria palavra “bugre” é recondicionada pela obra, tendo sido originalmente usada de forma pejorativa pelos imigrantes europeus para se referir aos povos nativos que não seguiam o ideário cristão e eram perseguidos pelos colonos no sul do país.
Essa série de figuras míticas encarna a visão de mundo da artista, fortemente ligada à natureza e a suas origens. Essa conexão aparece nos depoimentos que dava sobre suas técnicas – como quando conta que, em um sonho, teve a ideia de “vestir” as esculturas com cera de abelha. Os olhares profundos, nos talhos cobertos por tinta preta, reforçam a expressividade desse exército que marca a posição devida aos povos originários do território brasileiro na história mundial da arte.