Na contramão correta
Pensadora da nova moda sustentável, Marine Serre fala sobre seu processo criativo e como a indústria pode colaborar com o futuro.
Desde que surgiu no circuito da moda internacional, em 2017, a estilista francesa Marine Serre tem movimentado olhares e discussões. Não só por sua moda neoesportiva ou pela estampa-desejo de Lua crescente, copiada ao redor do mundo, mas principalmente pelo olhar afiado em relação à sustentabilidade, tão pragmático quanto sensível. Para construir suas roupas regeneradas, como ela chama, Marine potencializa a onda do upcycling: vai além do mero desmonte de peças antigas, buscando matérias-primas em descartes de tapeçarias, sobras de couro e até colchas de lã antigas para seus modelos. Na última temporada, de inverno 2021, ela levou seus discursos à máxima potência com a apresentação de Core: uma série de 19 curtas-metragens que mostram com detalhes os processos de garimpo e regeneração e apresentam as criações resultantes em crônicas triviais do cotidiano, transformando o espectador em voyeur e, ao mesmo tempo, criando um desejo por uma vida mais real, deixando as roupas em segundo plano. De Paris, Marine conversou com L’officiel sobre seus ideais e o futuro da moda – e do planeta. L’OFFICIEL: Você faz parte de uma geração de designers que adotam o discurso da moda sustentável naturalmente, enquanto para algumas grandes marcas essa ainda é uma questão tratada pelos departamentos de marketing – que pensam conceitos como upcycling apenas como hashtags do momento. Como você julga que uma visão criativa de sustentabilidade como a sua pode garantir uma transformação permanente na indústria?
MARINE SERRE: Precisamos permanecer extremamente criativos, mas, ao mesmo tempo, rigorosos na maneira com que transformamos a indústria. O que mais devemos considerar é o ambiente que nos rodeia e começar por aí. Não quero dizer que a única maneira de lidar com sustentabilidade é fazer como estou fazendo, ou como outra pessoa faz. Não existe uma solução única para todos. Marcas de diferentes tamanhos devem encontrar maneiras diferentes de fazer o próprio processo sustentável. Mas devemos começar a olhar mais atentamente para o que está a nosso redor. Não focar tão estritamente na moda, mas colocar nosso trabalho em uma perspectiva holística em relação ao mundo.
L’O: Você fala muito sobre valores em seu trabalho, sobre como podemos ver com novos olhos materiais que o mundo estava acostumado a deixar de lado. Como foi treinar esse olhar para perceber o potencial de algo que não costuma ter um valor inerente de mercado?
MS: Eu costumava comprar roupas de segunda mão na Emmaus (loja beneficente francesa) e colecionar peças vintage desde muito jovem. Naquela época, morando no interior, as grandes lojas de departamento não existiam para mim – mas eu gostava de me vestir, colecionar, cortar e misturar as peças. Eu tinha 13 anos e considero que minha relação com a moda começou ali. Com certeza também fui muito inspirada pelo meu avô, que era um colecionador de objetos mundanos do cotidiano. Ele tinha um jeito peculiar de lidar com aquilo – tudo era cuidadosamente selecionado e classificado, como um colecionador profissional, o que dava um sentido especial ao conjunto. Acabei absorvendo esse olhar meticuloso dele e isso se reflete na maneira como coleto e uso as peças e matérias-primas presentes em nossa vida. O que fazemos é transformar o desperdício de nossos ancestrais para criar novas peças e garantir a sobrevivência do mundo do futuro. Esse conceito foi maximizado na coleção Core, que estabilizou silhuetas, materiais, formas e processos da marca. Havia uma necessidade de ir contra a novidade que a moda pede a cada estação. Pensei que seria mais interessante trabalhar
nesses processos, que eram iniciados e nunca concluídos no tempo entre a criação e o desenvolvimento entre as estações (que é extremamente curto). O desafio era manter a hibridização, a criatividade e os processos de transformação da marca, dando acesso ao que havíamos criado desde o começo. Então, era realmente importante voltar ao que já fizemos. Pois, às vezes, quando as coisas ficam muito rápidas, há o risco de que as pessoas percam o sentido do que é Marine Serre em termos de roupas. Regenerar, para mim, significa o crescimento de algo que foi danificado, trazer uma vida nova e mais vigorosa para coisas, renovar existências, gerar novamente.
L’O: A questão do meio ambiente pede que as pessoas consumam menos e as fábricas diminuam a produção. Por outro lado, há todo um ecossistema da moda que depende que as pessoas sigam comprando e as marcas, produzindo novidades para criar desejo. É um balanço que poderia ser classificado como certo cinismo – um lema que diz “compre menos, mas compre de mim”. É possível chegar a um meio-termo? Uma combinação que preserve o planeta mas, ao mesmo tempo, não dizime a indústria da moda?
MS: Como eu estava dizendo antes, é importante ter uma perspectiva mais ampla em relação à moda e ao mundo. Pergunto-me com frequência sobre a função e a necessidade de uma roupa nova quando ela chega ao mercado. Posso criar algo que é útil e que tenha propósito, sem gerar mais desperdício. É muito sobre cuidar, tentar fazer sentido e respeitar o mundo, encontrar a proporção certa no meio do caminho, sendo resiliente no processo de criação.
EU ME INSPIRO NA 9,'$ &27,',$1$. MUITAS VEZES, DESCREVO-ME COMO UMA ESPONJA — PORQUE ABSORVO MUITO DO QUE HÁ A MEU REDOR, SELECIONANDO O ÚTIL E O MAIS NECESSÁRIO, readaptando e transformando EM ALGO A SERVIÇO DAS PESSOAS. PARA MIM, A MODA É UMA FORMA DE FAZER AS COISAS MUDAREM. Imaginação a serviço DA TRANSFORMAÇÃO.
MARINE SERRE
L’O: Penso que seu processo criativo fala muito sobre o tempo – como lidamos com o agora e como olhamos para o passado. Na última apresentação, a marca produziu uma série de filmes que demandam um tempo para apreciação e digestão. Há ali um manifesto para refletir sobre a velocidade da moda – e até sobre o jeito com que nos comunicamos hoje em dia –, cujo conteúdo é produzido em larga escala e potencialmente esquecido em meia hora?
MS: Com certeza. Com Core, nós convidamos a audiência a tirar um tempo para apreciar todos os detalhes. Optamos pela reflexão, pelo cuidado e pela dedicação. Queremos que as pessoas sintam cada vídeo, já que é difícil que assistam a tudo de uma vez. Esperamos que voltem e digiram a experiência no próprio ritmo. Certamente há conexões com meditação, ASMR, relações humanas fortes, comida e uma sensação de bons sentimentos, algo importante de se transmitir naquele momento. Sinto que a abordagem que tenho trabalhado para a minha marca é muito semelhante a essa ideia. Requer muita força e aceitação dos acontecimentos para que superemos o presente de uma forma produtiva e positiva. Tive a necessidade de libertar a experiência do espetáculo em documentário porque isso cria a oportunidade de trabalhar nele por mais tempo e de conectar as roupas à ação e não apenas a uma pessoa. Você consegue aquelas narrativas mais precisamente e elas impulsionam exponencialmente a estimulação de emoções e sentimentos. Estamos nos conectando e nos conectando com as pessoas. Elas fazem parte do Core porque precisam vivenciá-lo como espectadores. Atribuímos mais responsabilidade a quem está assistindo, pois é preciso dedicar o tempo necessário para absorver e processar.
L’O: Nos filmes de Core, eu vejo uma discussão sobre uma vida que é mais pé no chão, com as roupas servindo de coadjuvantes, algo que é raro na moda. Você já disse, em outra oportunidade, que não gosta do “sonho” que a indústria sempre vendeu. Acha que estamos em um momento de refletir sobre uma moda que esteja em função da vida, mais do que uma vida que gira em função da moda?
MS: Nós não devemos considerar a moda apenas como roupa, mas como um processo, um compromisso, uma forma de agir e de viver. Eu me inspiro na vida cotidiana. Muitas vezes, descrevo-me como uma esponja – porque absorvo muito do que há a meu redor, selecionando o útil e o mais necessário, readaptando e transformando em algo a serviço das pessoas. Para mim, a moda é uma forma de fazer as coisas mudarem. Imaginação a serviço da transformação.
L’O: Durante a pandemia, houve uma grande discussão sobre como deveríamos voltar a um ideal de vida mais simples – seja consumindo menos, seja voltando os olhares para nosso interior e para a natureza etc. Qual é a definição de vida simples para Marine Serre?
MS: Não é sobre uma ideia de vida simples, mas sobre nos reconectarmos, de forma autêntica e primitiva, com uma visão holística em relação ao mundo.