L'Officiel Brasil

Na contramão correta

Pensadora da nova moda sustentáve­l, Marine Serre fala sobre seu processo criativo e como a indústria pode colaborar com o futuro.

- Por EDUARDO VIVEIROS

Desde que surgiu no circuito da moda internacio­nal, em 2017, a estilista francesa Marine Serre tem movimentad­o olhares e discussões. Não só por sua moda neoesporti­va ou pela estampa-desejo de Lua crescente, copiada ao redor do mundo, mas principalm­ente pelo olhar afiado em relação à sustentabi­lidade, tão pragmático quanto sensível. Para construir suas roupas regenerada­s, como ela chama, Marine potenciali­za a onda do upcycling: vai além do mero desmonte de peças antigas, buscando matérias-primas em descartes de tapeçarias, sobras de couro e até colchas de lã antigas para seus modelos. Na última temporada, de inverno 2021, ela levou seus discursos à máxima potência com a apresentaç­ão de Core: uma série de 19 curtas-metragens que mostram com detalhes os processos de garimpo e regeneraçã­o e apresentam as criações resultante­s em crônicas triviais do cotidiano, transforma­ndo o espectador em voyeur e, ao mesmo tempo, criando um desejo por uma vida mais real, deixando as roupas em segundo plano. De Paris, Marine conversou com L’officiel sobre seus ideais e o futuro da moda – e do planeta. L’OFFICIEL: Você faz parte de uma geração de designers que adotam o discurso da moda sustentáve­l naturalmen­te, enquanto para algumas grandes marcas essa ainda é uma questão tratada pelos departamen­tos de marketing – que pensam conceitos como upcycling apenas como hashtags do momento. Como você julga que uma visão criativa de sustentabi­lidade como a sua pode garantir uma transforma­ção permanente na indústria?

MARINE SERRE: Precisamos permanecer extremamen­te criativos, mas, ao mesmo tempo, rigorosos na maneira com que transforma­mos a indústria. O que mais devemos considerar é o ambiente que nos rodeia e começar por aí. Não quero dizer que a única maneira de lidar com sustentabi­lidade é fazer como estou fazendo, ou como outra pessoa faz. Não existe uma solução única para todos. Marcas de diferentes tamanhos devem encontrar maneiras diferentes de fazer o próprio processo sustentáve­l. Mas devemos começar a olhar mais atentament­e para o que está a nosso redor. Não focar tão estritamen­te na moda, mas colocar nosso trabalho em uma perspectiv­a holística em relação ao mundo.

L’O: Você fala muito sobre valores em seu trabalho, sobre como podemos ver com novos olhos materiais que o mundo estava acostumado a deixar de lado. Como foi treinar esse olhar para perceber o potencial de algo que não costuma ter um valor inerente de mercado?

MS: Eu costumava comprar roupas de segunda mão na Emmaus (loja beneficent­e francesa) e colecionar peças vintage desde muito jovem. Naquela época, morando no interior, as grandes lojas de departamen­to não existiam para mim – mas eu gostava de me vestir, colecionar, cortar e misturar as peças. Eu tinha 13 anos e considero que minha relação com a moda começou ali. Com certeza também fui muito inspirada pelo meu avô, que era um colecionad­or de objetos mundanos do cotidiano. Ele tinha um jeito peculiar de lidar com aquilo – tudo era cuidadosam­ente selecionad­o e classifica­do, como um colecionad­or profission­al, o que dava um sentido especial ao conjunto. Acabei absorvendo esse olhar meticuloso dele e isso se reflete na maneira como coleto e uso as peças e matérias-primas presentes em nossa vida. O que fazemos é transforma­r o desperdíci­o de nossos ancestrais para criar novas peças e garantir a sobrevivên­cia do mundo do futuro. Esse conceito foi maximizado na coleção Core, que estabilizo­u silhuetas, materiais, formas e processos da marca. Havia uma necessidad­e de ir contra a novidade que a moda pede a cada estação. Pensei que seria mais interessan­te trabalhar

nesses processos, que eram iniciados e nunca concluídos no tempo entre a criação e o desenvolvi­mento entre as estações (que é extremamen­te curto). O desafio era manter a hibridizaç­ão, a criativida­de e os processos de transforma­ção da marca, dando acesso ao que havíamos criado desde o começo. Então, era realmente importante voltar ao que já fizemos. Pois, às vezes, quando as coisas ficam muito rápidas, há o risco de que as pessoas percam o sentido do que é Marine Serre em termos de roupas. Regenerar, para mim, significa o cresciment­o de algo que foi danificado, trazer uma vida nova e mais vigorosa para coisas, renovar existência­s, gerar novamente.

L’O: A questão do meio ambiente pede que as pessoas consumam menos e as fábricas diminuam a produção. Por outro lado, há todo um ecossistem­a da moda que depende que as pessoas sigam comprando e as marcas, produzindo novidades para criar desejo. É um balanço que poderia ser classifica­do como certo cinismo – um lema que diz “compre menos, mas compre de mim”. É possível chegar a um meio-termo? Uma combinação que preserve o planeta mas, ao mesmo tempo, não dizime a indústria da moda?

MS: Como eu estava dizendo antes, é importante ter uma perspectiv­a mais ampla em relação à moda e ao mundo. Pergunto-me com frequência sobre a função e a necessidad­e de uma roupa nova quando ela chega ao mercado. Posso criar algo que é útil e que tenha propósito, sem gerar mais desperdíci­o. É muito sobre cuidar, tentar fazer sentido e respeitar o mundo, encontrar a proporção certa no meio do caminho, sendo resiliente no processo de criação.

EU ME INSPIRO NA 9,'$ &27,',$1$. MUITAS VEZES, DESCREVO-ME COMO UMA ESPONJA — PORQUE ABSORVO MUITO DO QUE HÁ A MEU REDOR, SELECIONAN­DO O ÚTIL E O MAIS NECESSÁRIO, readaptand­o e transforma­ndo EM ALGO A SERVIÇO DAS PESSOAS. PARA MIM, A MODA É UMA FORMA DE FAZER AS COISAS MUDAREM. Imaginação a serviço DA TRANSFORMA­ÇÃO.

MARINE SERRE

L’O: Penso que seu processo criativo fala muito sobre o tempo – como lidamos com o agora e como olhamos para o passado. Na última apresentaç­ão, a marca produziu uma série de filmes que demandam um tempo para apreciação e digestão. Há ali um manifesto para refletir sobre a velocidade da moda – e até sobre o jeito com que nos comunicamo­s hoje em dia –, cujo conteúdo é produzido em larga escala e potencialm­ente esquecido em meia hora?

MS: Com certeza. Com Core, nós convidamos a audiência a tirar um tempo para apreciar todos os detalhes. Optamos pela reflexão, pelo cuidado e pela dedicação. Queremos que as pessoas sintam cada vídeo, já que é difícil que assistam a tudo de uma vez. Esperamos que voltem e digiram a experiênci­a no próprio ritmo. Certamente há conexões com meditação, ASMR, relações humanas fortes, comida e uma sensação de bons sentimento­s, algo importante de se transmitir naquele momento. Sinto que a abordagem que tenho trabalhado para a minha marca é muito semelhante a essa ideia. Requer muita força e aceitação dos acontecime­ntos para que superemos o presente de uma forma produtiva e positiva. Tive a necessidad­e de libertar a experiênci­a do espetáculo em documentár­io porque isso cria a oportunida­de de trabalhar nele por mais tempo e de conectar as roupas à ação e não apenas a uma pessoa. Você consegue aquelas narrativas mais precisamen­te e elas impulsiona­m exponencia­lmente a estimulaçã­o de emoções e sentimento­s. Estamos nos conectando e nos conectando com as pessoas. Elas fazem parte do Core porque precisam vivenciá-lo como espectador­es. Atribuímos mais responsabi­lidade a quem está assistindo, pois é preciso dedicar o tempo necessário para absorver e processar.

L’O: Nos filmes de Core, eu vejo uma discussão sobre uma vida que é mais pé no chão, com as roupas servindo de coadjuvant­es, algo que é raro na moda. Você já disse, em outra oportunida­de, que não gosta do “sonho” que a indústria sempre vendeu. Acha que estamos em um momento de refletir sobre uma moda que esteja em função da vida, mais do que uma vida que gira em função da moda?

MS: Nós não devemos considerar a moda apenas como roupa, mas como um processo, um compromiss­o, uma forma de agir e de viver. Eu me inspiro na vida cotidiana. Muitas vezes, descrevo-me como uma esponja – porque absorvo muito do que há a meu redor, selecionan­do o útil e o mais necessário, readaptand­o e transforma­ndo em algo a serviço das pessoas. Para mim, a moda é uma forma de fazer as coisas mudarem. Imaginação a serviço da transforma­ção.

L’O: Durante a pandemia, houve uma grande discussão sobre como deveríamos voltar a um ideal de vida mais simples – seja consumindo menos, seja voltando os olhares para nosso interior e para a natureza etc. Qual é a definição de vida simples para Marine Serre?

MS: Não é sobre uma ideia de vida simples, mas sobre nos reconectar­mos, de forma autêntica e primitiva, com uma visão holística em relação ao mundo.

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 ??  ?? PÁGINA AO LADO – Marine Serre. ACIMA, NA PÁGINA ANTERIOR E NA PÁGINA A SEGUIR: cenas de manifesto-instalação da marca, que leva as roupas regenerada­s para situações triviais do cotidiano
PÁGINA AO LADO – Marine Serre. ACIMA, NA PÁGINA ANTERIOR E NA PÁGINA A SEGUIR: cenas de manifesto-instalação da marca, que leva as roupas regenerada­s para situações triviais do cotidiano
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