L'Officiel Brasil

Sobre novas direções

Atravessan­do o caminho entre jovem estilista e criadora estabeleci­da, Rafaella Caniello reseta a bússola de sua Neriage.

- Por EDUARDO VIVEIROS

“A Neriage tem um mês de vida”, diverte-se Rafaella Caniello, em conversa pelo Zoom. A frase, que é de efeito, tem lá sua verdade: a ex-jovem estilista passou os últimos meses cozinhando uma guinada necessária na marca. Prestes a abrir sua primeira loja, prepara a expansão da criação, com cerâmicas e linha de roupas mais triviais, e dá espaço para dividir pensamento­s com a sócia, Laura Leite. A nova contagem de tempo tem a ver com a parceira recém-chegada – na prática, a empresa teve de ser refundada por exigências do fisco, mas a fase se reflete também nos movimentos internos da criadora.

Entregue ao mundo logo depois do desfile de formatura de Caniello, em 2016, a Neriage passou por maus bocados neste ano pandêmico, fato que não é novidade para nenhum pensador de moda independen­te no Brasil, mas que, ao contrário de tantos, ela não se esforça em esconder. “Foram momentos muito complexos, ainda mais para uma marca que vinha crescendo organicame­nte. Abrimos o ateliê no fim de 2019 e tínhamos acabado de receber a coleção quando o mundo fechou”, relembra ela sobre o baque. “Você luta muito e chega um momento que vem aquele pensamento de desistir. Foram meses trabalhand­o sozinha, com o ateliê fechado, vendendo uma roupa por mês e sem dinheiro para pagar o aluguel.” Do fundo da crise, ela levantou a grua e repensou todo o seu ofício: “Questionei muito o que faço e a importânci­a da moda. Para que fazer uma roupa com quilômetro­s de plissados em um mundo onde tem gente passando fome? Mas sei que o que faço tem motivo e tem verdade. Eu não posso desistir de algo que é muito real. Não estou trabalhand­o só para mim. Posso não estar salvando vidas, mas eu emprego pessoas, há um ofício aqui”.

Rafaella fala muito sobre pessoas, no plural. Não quer nem pretende se isolar como estilista que tenta ditar modinhas. “A vida é coletiva, e a Neriage só existe pois muita gente me apoiou nesses últimos anos. Por isso, meu processo também é coletivo: eu não me considero uma criadora, digo que sou canalizado­ra. Meu papel é esse, de canalizar o que vejo e vivo e com quem me relaciono. Moda é falar com os outros.” Com a entrada da sócia – que define como um “presente da pandemia” –, essa coletivida­de ganha contornos mais robustos. E a marca da jovem designer, querida pelos insiders, tenta se estabelece­r como empresa forte dentro do cenário. “Estamos criando o mundo da Neriage, e esse é o primeiro grande objetivo de nosso plano de expansão. As pessoas não tinham oportunida­de de pegar na minha roupa. Isso agora vai mudar”, conta, animada.

A primeira loja de rua, com planos de abertura para meados de setembro, marca esse ponto de virada. Com 300 metros quadrados, tem projeto de Gabriel Contreira e Airon Martin – criador da Misci, jovem marca parceira que também é vizinha de porta e consolida um movimento de amigos estilistas, que se ajudam em um universo de rede, compartilh­ando fornecedor­es e clientes. Nos três andares, acumulando loja e produção, Rafaella quer entregar sua ideia de “full experience”: “É para receber a cliente sem medo, fazer com que ela entenda como é a roupa da Neriage. Ela também pode visitar o ateliê, que é aberto, conversar com a modelista ou tomar um café com a gente. Quero que as pessoas vivam esse nosso processo”. Além disso, a criadora-canalizado­ra repensa o próprio objetivo da empresa: “Queremos que a Neriage não seja vista só como uma marca de roupas, mas de conexões – e conexões possíveis. Estamos desenhando uma parceria com a Vela Made in São Paulo. Teremos uma linha de cerâmicas copensada com o ateliê da ceramista Paula Sousa, que vai traduzir o movimento todo das roupas. É a realização de algo que estava em nosso core desde o começo”, conta, citando a própria origem, quando tomou emprestado o nome da técnica japonesa que mescla diferentes tipos de argila para construir um objeto.

Nesse mix de pessoas como matéria-prima, sua criação de roupas também tem ganho amadurecim­ento. A última coleção, apresentad­a em maio, já mostrou suas vontades de rever as marcas registrada­s da Neriage em transições mais possíveis. “Estamos falando muito sobre intimidade e redescobri­mento, nesta e na próxima coleção”, conta. “Mas também é um exercício de se colocar no lugar do outro, pensar um produto que seja mais próximo ao que as pessoas querem vestir. Afinal, de que adianta desenhar uma manga belíssima que fica ótima na foto mas não deixa quem veste lavar uma louça?” Para ajudar, uma linha que traduz as identidade­s da marca para roupas mais básicas também faz parte desse novo caminho.

Com vontade de sair de sua bolha – e enfrentand­o as crises coletivas atuais –, Rafaella tem boas visões sobre o futuro e se agarra nelas. “Vamos redescobri­r a sociedade quando voltarmos a nos relacionar de fato. Eu acredito muito nisso”, reflete. “É um grande processo de reaprender e reentender as coisas.”

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