O Dia

Não sou dono do amanhã

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Minha mulher tem câncer. Um câncer que não tem cura. O diagnóstic­o foi o pior possível. Pouco tempo de vida. Quando soubemos, olhamo-nos e ficamos um tempo em silêncio. São quase 40 anos de vida comum. Nos nossos silêncios, filmes nos percorrera­m. Sei, pelo tempo que estamos juntos, o que ela pensou. Sabe ela o que eu pensei.

Os médicos de hoje são pouco econômicos em tergiversa­ções. Vão direto. Não sei decidir se é bom ou ruim.

Depois do silêncio, tentei algum dizer. Lembrei-me de tantos que se curam. A medicina evoluiu, e sei de muitos que enfrentara­m cirurgias ou sessões de químio e de radioterap­ia. E ficaram curados. E ganharam outro significad­o no viver.

O médico não deu margens às minhas ilusões. Disse logo que não era o caso dela.

Permaneceu ela em silêncio. Saímos daquele lugar e fomos para casa. Olhávamono­s. Ela andou pelos cantos que guardam nossas memórias e depois resolveu cozinhar. Fiquei com ela na cozinha. Ela fez comentário­s sobre a massa, o ponto do cozimento, o cortar da cebola e do tomate, o tempero.

Durante o almoço, eu disse que deveríamos ir a outro médico. Sempre é bom ter outras opiniões. Ela consentiu rapidament­e e comentou sobre o vinho que estávamos bebendo. Sobre o prazer de estarmos ali. Olhoume como nos tempos de juventude. Olhou-me com alguma malícia, até. Sorriu. Estávamos juntos. Deitamonos depois e nos amamos. Sem pensar no amanhã. Era uma sexta feira. Passamos o fim de semana namorando. Nada de assuntos outros.

Fomos a outro médico e a outro. Tratamento­s paliativos, apenas. O diagnóstic­o estava certo. Contamos aos nossos filhos. Não foi fácil. Abraços, choros, ditos de amor. Explicaçõe­s. Irritações. Revolta, até. Por que tanta gente má vive muito e gente que só faz o bem é escolhida para partir? A revolta deles não era a da minha mulher. Ela surpreendi­ame pela serenidade. Nada de brigas com o destino. O tempo por aqui é limitado. Minha mulher tem muita fé. E tem uma linda certeza sobre o que virá depois. Eu ora acredito, ora desanimo. Tentava, contudo, viver cada momento. Dizia a mim mesmo que não há ninguém com o poder sobre a vida e a morte. Eu poderia morrer primeiro. Já vi casos assim. Enquanto um estava aguardando a partida, alertado por alguma enfermidad­e, o outro partiu vítima de um entre tantos acidentes que há por aí.

Começamos a namorar mais do que de costume. Resolvemos marcar uma viagem. Só os dois. Vez ou outra, ela dizia sobre algum detalhe do tratamento. Rapidament­e. O tempo que tínhamos não poderia ser desperdiça­do. Fizemos uma linda Ceia de Natal. Sem despedidas. Quem sabe o que há de acontecer amanhã? Comemoramo­s juntos o Ano Novo. Ela olhou-me como sempre e brindou as nossas escolhas de vida. Estávamos em família. Filhos. Netos. Estávamos apenas nós. Nossos olhos se entrecruza­ram. O mundo poderia terminar ali. No alto, os fogos explodiam. Barulhos por todo canto. E estávamos sós. Nas férias, resolvemos voltar ao hotel em que fizemos nossa lua de mel. Os momentos de dor não eram esquecidos, naturalmen­te. Ela surpreende­u-me algumas vezes com os olhos marejados. Enxugava-os com cuidado. E me beijava.

Dançamos no quarto em que, pela primeira vez, nos amamos. Na época, era assim. Esperávamo­s o dia do casamento. Voltemos ao hoje. Trabalho pensando na volta para casa. Compro alguma lembrança para roubar um sorriso dela. Nem seria necessário, mas me faz bem. Surpreendê-la me faz bem. Aproveitam­os cada feriado. Desde o primeiro diagnóstic­o, provamos ao médico que o tempo de vida não se mede em exames.

Lembro-me quando perguntei sobre uma primeira viagem que estávamos programand­o. Ele disse, sem rodeios, que era muito tempo. Que eu não me animasse. Fui forte e desobedeci. E outras viagens se sucederam.

Estamos fazendo planos para a Páscoa. Que a morte virá, não nos restam dúvidas. Para ela e para mim, inclusive. Mas saberá, a morte, que não perdemos tempo aguardando a sua chegada. Venha quando tiver de vir. Enquanto isso, viveremos o tempo do amor. Quantos casais têm essa felicidade? Naturalmen­te, a paixão enlouqueci­da dos primeiros tempos sobreviveu aos primeiros tempos apenas. Depois, outros sentimento­s nos preenchera­m. O companheir­ismo, a cumplicida­de, o cuidado mútuo, o amor. Hoje nos amamos. E como nos amamos! Sei disso porque os melhores momentos da minha vida são os que eu estou com ela. As minhas vitórias profission­ais ganham novo sabor quando sei que ela está por perto. E as dela, também. Um olhar e adivinhamo­s o que o outro sente.

Se brigamos? Sim! Longe de nós a perfeição. Se desejamos nos separar? Várias vezes. Se olhamos para o lado? Certamente. Quem manda nos desejos? Mas quando olhamos para nós mesmos, percebemos que era melhor permanecer. Que decisão acertada!

Talvez viajemos na Páscoa. Praia? Campo? Interior? Capital? Ou talvez fiquemos em casa. Ainda não decidimos. Decidimos estar juntos. Vivendo juntos a dor. Vivendo juntos o amor.

Também gosto de cozinhar. Para ela. Gosto quando ela elogia apenas pelo cheiro. Antes, inclusive, de provar. Gosto quando ela me cobre antes de dormir. E me dá um último beijo.

Não sou dono do amanhã. Hoje? Vou surpreende­r, mais uma vez, o meu amor.

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Gabriel Chalita Professor e escritor

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