Millôr, sempre ele!
Ouvi de um humorista brasileiro, craque do traço e do texto: “Comecei a desenhar charges e cartuns porque queria ser Millôr. E a escrever pelo mesmo motivo”.
Dia desses revi o ótimo documentário ‘Vinicius’, de Miguel Faria Jr., cheio de depoimentos engraçados, inteligentes e curiosos sobre o autor da linda letra de ‘Garota de Ipanema’. Senti falta, no filme, de referência à homenagem comovente feita a Vinicius por Millôr Fernandes. Depois da morte do grande compositor e poeta, quando a Rua Montenegro virou Vinicius de Moraes, Millôr publicou um hai-kai em sua página na revista ‘Veja’, assim: a ilustração mostrava duas placas de rua, uma fazendo esquina com a outra, nelas escrito “Rua Prudente de Moraes” e “Rua Vinicius de Moraes”. E o texto, definitivo: “Em Ipanema, numa das esquinas mais legais, juntaram-se o Prudente e o imprudente de Moraes”.
Sou fã do Millôr, de sua obra, de sua história de vida. O maior ídolo dos nossos humoristas, para quem escrever e desenhar parecia muito fácil, teve infância das mais difíceis. Ficou órfão de pai com menos de 1 ano de vida, e com menos de 10 perdeu a mãe. Ambos morreram com apenas 36 anos de idade. Estudou a vida inteira em escolas públicas e foi formado, como ele mesmo escreveu, “pela universidade do Meyer”. Estreou na profissão com 14 anos, na revista ‘O Cruzeiro’, onde fez de tudo o que se pode imaginar dentro de uma redação. Começou como contínuo e, ao abandonar a publicação, era homem feito e jornalista dos mais respeitados.
Millôr participou de duas experiências marcantes na imprensa brasi- leira: a criação do ‘Pasquim’ — que ajudou a fundar —, em 1969, e um ano antes a revista ‘Veja’, onde começou a ocupar uma página que se transformou em portal da inteligência. Começou a publicar no ‘Pasquim’ logo nos primeiros números e durante um período dirigiu a redação do semanário. As duas experiências lhe trouxeram aborrecimentos políticos, como a quase prisão junto com os demais editores do ‘Pasca’ e o processo sob a Lei de Segurança Nacional, por conta de um desenho publicado em ‘Veja’.
O grande mestre do texto, do traço e do pensamento, que morreu em 2012, aos 87 anos, ocupou espaços nobres também aqui no DIA, na ‘Isto É’ e no ‘Jornal do Brasil’, sempre escrevendo e desenhando. Autor teatral e tradutor respeitadíssimo, deixou mais de 50 livros publicados e lançou, em 1994, uma obra definitiva, ‘A Bíblia do Caos’, reunindo mais de 5 mil registros em texto do genial e, como se autoproclamava, “irritante guru do Meyer”.
Alguns tópicos da bossa millôriana, todas sobre o verbete ‘Igualdade’ (todos absolutamente oportunos):
* Todos os homens são iguais perante a ausência de leis.
* A igualdade entre os seres humanos termina na maneira como são feitos.
* O sol nasce para todos: para os 99% que vão dar duro o dia inteiro e para o 1% que está saindo das boates.
* Canalha! Vagabundo! Miserável! Ambicioso! Vaidoso! Mesquinho! Meu semelhante.