O Dia

Minhas duas mães

- Gabriel Chalita Professor e escritor

Os relógios são muito intrigante­s. Quando querem, se lançam sem ninguém para segurá-los. Não é o caso agora. Eles estão tímidos. Brincando de demorar.

O dia de amanhã está aguardando o dia de hoje ir embora. Para que venha, enfim. Amanhã, vamos para o interior. Minha mãe e eu. Vamos encontrar a minha mãe. A que me gerou. A que me doou.

Já doeu, algumas vezes, pensar que ela criou os outros três filhos. Não faz tempo que sei dessa história. Sabia que era adotado. E adorado.

Minha mãe sempre soube permanecer nos meus vazios. E sempre se esmerou em me fazer compreende­r que era eu quem devia preenchê-los. A tristeza já me acordou muitas vezes. Hoje, nos fazemos companhia.

Minha mãe me adotou por decisão de vida. Ela quis ser minha mãe. Ela me gerou em seus sentimento­s, me gerou em seus sonhos de generosida­de. E o tempo foi nos costurando. Somos mãe e filho. Sei disso e disso jamais duvidei.

Soube ela que a mãe que me gerou está de partida. Um irmão meu a encontrou. E conversara­m sobre despedidas. Doente, ela sabe do amanhã. Vamos nos ver depois de 30 anos.

Quando minha mãe foi descostura­ndo seus dizeres, eu logo entendi. Por alguns instantes, tive dúvidas. Por que só agora? Por que não convivemos antes? Por que não poderemos conviver por muitos depois? O que ela quer me dizer? Pedidos de desculpas serão desnecessá­rios. Aprendi a não cobrar explicaçõe­s. As narrativas são tantas. Quem sabe o que acontece quando algo não acontece?

Eu fui o primeiro filho que ela teve. Meu pai não quis ser meu pai. Nem

pai de ninguém, pelo que me disseram há pouco. E ela deve ter chorado o desfecho. Certamente. Não sei se saberei os atos e os entreatos. Se compreende­rei os ditos e os silêncios. Não sei se se trata de compreende­r ou de sentir. Houve um outro homem e aí vieram os outros filhos. Então, se já estava normalizad­o, por que só agora essa procura? Não. Nada de julgamento­s.

Choramos juntos, minha mãe e eu. Decidimos juntos conhecer o ontem. Que sentimento­s ela teria tido quando soube que eu estava dentro dela? Que dúvidas teve? Houve vozes que aconselhar­am a desistir? Vozes que se incumbiram de desencoraj­ar a procura? Vozes e mais vozes nos fundem ou nos confundem. Difícil distinguir.

O vento lá fora assobia frio. Olho o anoitecer e penso nas despedidas. Um dia se despede. Um dia, ela se despediu de mim. Um dia, ela vai se despedir daqui. E também eu. E, antes disso, nos encontrare­mos e nos despedirem­os. Ou nos encontrare­mos outras vezes. Não sei dizer.

A noite está chegando. O escurecer vai dando calmaria ao dia. Não à minha alma. Estou eufórico e temeroso. Queria ter a reação correta. Nada de julgamento­s. Queria olhar nos olhos dela e dizer que continuo seu filho. Que ela tenha paz. Queria não chorar. Ou talvez fosse melhorar chorar, não sei. Não chorar pode parecer pouca atenção ao encontro. Pouco derramar de sentimento­s.

Minha mãe vai comigo. Também ela deve ter suas questões. Nunca se conheceram. E estão unidas por uma vida. A minha vida. Toda vida importa. Um sopro e estamos aqui preenchend­o com o nosso jeito o universo. Um sopro e partimos. O vento já não se deixa ouvir. O relógio continua caprichoso. Lento como não se deve em dias como os de hoje. E eu não durmo.

Não quis ver a foto de minha mãe. Não fará diferença. É minha mãe. São minhas duas mães. Cada uma com suas cicatrizes. Cada uma me gerando em um lugar seu, muito seu. Cada uma querendo, no seu tempo, me encontrar. Amanhã, espero que o dia não seja implicante comigo e não compense a lentidão de hoje. Que seja tudo muito demorado. E que possamos colocar, nos instantes que tivermos, todos os outros tempos que já se foram.

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