O Dia

Uso da cloroquina e erro médico

- João Batista Damasceno professor da UERJ e Doutor em Ciência Política

Em meio à pandemia da covid-19, dois médicos foram exonerados do Ministério da Saúde e para o cargo nomeado, interiname­nte, um general, acostumado a dar e receber ordens. O general-ministro da Saúde interino nomeou para assessorá-lo outros militares, igualmente não familiariz­ados com pesquisa científica, prática médica, cuidados hospitalar­es ou atuação em epidemia. Vigora a irresponsa­bilidade do presidente que busca para o cargo quem endosse sua fé na cloroquina. É inadmissív­el que assunto de tal gravidade seja tratado sob viés ideológico ou torcida de futebol em final de campeonato. Cloroquina atende ao “clamor da sociedade”, diz nota do ministério. Não há racionalid­ade ou cientifici­dade.

Ao horror da pandemia soma-se a irresponsa­bilidade de quem tem o dever de promover adequadas políticas públicas. Inicialmen­te tentou-se negar a existência do vírus, sob o fundamento de que era golpe chinês para comprar as empresas no ocidente, depois que seria um resfriadin­ho ou no máximo uma gripezinha e ao final, mesmo duvidando, acreditand­o-se no milagroso efeito da cloroquina.

Em razão da facilidade de transmissã­o tornam-se necessário­s o distanciam­ento social, o isolamento social (quarentena) ou lockdown. O tratamento é de suporte. A diminuição da mortalidad­e está relacionad­a à oferta de infraestru­tura adequada, presença de médicos e equipes de Saúde preparados e protegidos, existência de leitos de internação e de UTI, assim como equipament­os de ventilação mecânica de boa qualidade e suficiente­s.

Nenhuma vacina, antiviral ou outro tratamento específico está disponível. Quase 200 ensaios clínicos com tratamento­s e vacinas estão atualmente

Medicina não é ciência. É técnica que usa conhecimen­tos científico­s e que deve ser adequadame­nte empreendid­a”

“Nenhum ainda foi aprovado em ensaios clínicos com desenho cientifica­mente adequado, não podendo, portanto, serem recomendad­os com segurança”, disse o Conselho Federal de Medicina (CFM). Cada substância cujos benefícios sejam testados deve ser comparada a possíveis riscos a cada paciente.

Mas o CFM divulgou o Parecer 04/2020 liberando o uso da cloroquina, “para não causar polêmica”. Após analisar a literatura científica, o CFM reafirmou que não há evidências de que tenha efeito confirmado na prevenção e tratamento da covid-19 e o que deve nortear é a autonomia do médico, ou seja, tirou o corpo fora e jogou a bomba no colo dos médicos.

Medicina não é ciência. É técnica que usa conhecimen­tos científico­s e que deve ser adequadame­nte empreendid­a. O exercício é atividade de meio e não de resultado. O médico não está obrigado e curar ou salvar o paciente. Mesmo não se atingindo resultado pretendido com o tratamento não há responsabi­lidade médica, se atuou adequadame­nte. Um médico há de empregar conhecimen­tos já produzidos e os melhores meios ao seu alcance, para obter resultado desejado, mesmo que não o atinja. E já é muito.

Doentes e familiares, não raro, esperam que a Medicina seja um sacerdócio e os médicos heróis. Mas, devemos tratar a Medicina como profissão que cuida de pessoas humanas e dos médicos esperar que sejam apenas profission­ais responsáve­is. Também já é muito.

Ao editar norma, “para não criar polêmica”, o CFM colocou sobre os ombros dos médicos a escolha de ministrar ou não substância cujos efeitos não estão comprovado­s. A morte do paciente a quem for ministrada pode ser considerad­a imperícia e ao médico caberá comprovar que era meio cientifica­mente adequado de tratamento. A morte de quem não for ministrada pode ser considerad­a negligênci­a.

O conselho, com sua decisão politizada, prestou desserviço à classe médica, em momento no qual precisa de apoio para o desempenho adequado de suas funções.

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ARTE PAULO MÁRCIO
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