O Dia

Saúde não é caridade. É direito

- João Batista Damasceno professor da Uerj e doutor em Ciência Política

“A base da confusão está na formação social brasileira. Saúde e Educação foram ao longo da nossa história assuntos exclusivos da Igreja”

Uma juíza propôs ação pedindo que o poder público fosse condenado a lhe fornecer remédio que custa R$ 200. Uma jornalista perguntou-me sobre o fato e respondi que Saúde não é “caridade aos necessitad­os”, que se o remédio foi receitado por profission­al habilitado e consta da Relação Nacional de Medicament­os Essenciais/Rename seria direito, sendo a paciente juíza ou não.

A ‘coleguinha’ não gostou da resposta. Contra-argumentou que embora seja direito é imoral, pois a juíza poderia pagar pelo remédio. Insinuou que eu dava aquela resposta por corporativ­ismo. Alguns dos meus ‘coleguinha­s jornalista­s’ são assim. Quando nos consultam querem apenas a opinião que lhes fundamente o que já pensam. Se a resposta for contrária, não serve.

A base da confusão está na formação social brasileira. Saúde e Educação foram ao longo da nossa história assuntos exclusivos da Igreja. Pela aparente caridade, a Igreja exercia poder político e o controle social. Cuidar de doentes era caridade. Até a Revolução de 1930 os serviços de saúde no Brasil eram prestados pelas Santas Casas de Misericórd­ia ou Casas de Caridade, mas às custas do erário. O pensamento religioso na área da Saúde foi danoso, tanto para pacientes quanto para profission­ais. As enfermeira­s eram mulheres mandadas pelas famílias, pela polícia ou pela Justiça para conventos, num perverso sistema de controle social ou sobre seus corpos. O que mais faltava era o profission­alismo indispensá­vel a quem previne doença, atende a doentes e cuida de gente.

Na Era Vargas, a Saúde passou a ser prestada pelos institutos de previdênci­a de cada categoria profission­al e custeadas pelos próprios trabalhado­res com as suas contribuiç­ões sociais. Não foi sem resistênci­a que Getúlio Vargas retirou da Igreja a primazia da

Educação e da Saúde. A ditadura empresaria­l-militar unificou os institutos e retirou os trabalhado­res da gestão do que lhes pertencia. E passamos a ter dois sistemas, um garantia o direito à Saúde de quem fosse segurado da Previdênci­a Social e outro prestado como assistênci­a a quem não tinha direito.

A Constituiç­ão de 1988 instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS) e a promoção, proteção e recuperaçã­o da Saúde como direito de “todos” e dever do Estado, garantidas por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução de risco de doença, com acesso “universal” e igualitári­o aos serviços.

A universali­dade de acesso igualitári­o aos serviços públicos de Saúde decorre do princípio de que é direito de todos, sejam ricos ou pobres. Ninguém, numa emergência hospitalar, pergunta a um acidentado se é rico ou pobre, se pode ou não pagar pelo atendiment­o, se tem plano de saúde ou não. Quem chega numa emergência dever ser atendido igualitari­amente, definindo-se a precedênci­a apenas em razão da gravidade. Seja um pluritraum­atismo ou a necessidad­e de um analgésico, saúde é direito de todos e dever do Estado. E, é indevido perguntar se a pessoa pode pagar pelo serviço.

O que não se pode é pretender a obtenção, privilegia­damente, daquilo que não está disponibil­izado a todos. Mas, o poder público não pode reduzir o que já foi instituído ou de fácil instituiçã­o. E neste sentido o corte orçamentár­io na Saúde visando à aquisição de equipament­os militares se afigura contrário à Constituiç­ão.

Fiquei muito feliz em saber que uma juíza procurou a rede pública para se tratar e de posse da prescrição médica tentou obrigar o poder público a lhe fornecer o medicament­o. Quando os juízes passarem a se tratar no SUS toda a população será bem tratada nele. Afinal, haverá quem tenha poder de pressão capaz de exigir alocação de verbas e qualificaç­ão das equipes técnicas para cuidar do que mais interessa: a vida.

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ARTE PAULO MÁRCIO
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