O Dia

Feijão verde, a rainha, o gramofone e o ‘bombardeio’ das maritacas

- Coluna publicada aos sábados

Vizinhos são superiores ao tempo. Acabei de constatar. Nem o vento, o frio e a garoa afastaram o pessoal do bate papo matinal. Assunto do dia: feijão fradinho, pintado de verde, para ser vendido como feijão de corda. O processo de falsificar o tipo da leguminosa é artesanal. Para a maioria dos amigos, o lucro é ínfimo e não vale, financeira­mente, o crime. Quanto à saúde de quem vai comer (ou já comeu), só verificand­o nas UPAs desse estado afora.

O vizinho de bombordo foi logo bancando o sabichão: “Eu não caio numa armadilha desta. Conheço feijão de corda e não compraria o falso”. Demorou para que se falasse do crime de Saúde pública. E, a pergunta lançada pelo Adilsinho: “O criminoso que aplicou o golpe ainda tá solto?”. Foi providenci­al. Fred não deixou barato: “Como não ver que o feijão está pintado? E a cor, na fervura, na água?”. Lembram do ditado “comeu gato por lebre”?

Caramba, 18°C no quintal. Mas, o vento dá sensação de 16°C, ou menos. Não tive escolha. Todos na varanda, pelo menos sem a garoa. O café da garrafa térmica acabou. O vizinho do Sudeste, meio abusadinho, foi mais além: “Dá para sair uma dose de conhaque?”. Fingi que não escutei. Pô, logo

cedo, pela manhã? A conversa é sobre feijão. Não sobre uvas !

Mas, Gordinho, nosso ex-taberneiro, mastigando nêsperas que colheu no pé da frutífera, dono de memória pródiga, não resistiu: “Ainda tem aquele queijo Canastra?”. Se eu não tiver cuidado, esse encontro vai virar piquenique. Raciocínio rápido, avisei em um tom de voz gutural, quase alto: “Gente, estou trabalhand­o, ainda não consegui varrer o quintal e aqui não é nenhum restaurant­e popular. São quase 7 horas de matina !

E, chega mais um vizinho. Paulo César, o faz tudo da área: “Ainda sobrou café?”. O cara tá de camiseta, bermuda e sandálias tipo havaiana. Caramba, esse merecia o conhaque. Mas, ele não bebe e não fuma. Mas, come bem... Tá pesando pouco mais de cem quilos. Foi ele quem lembrou: “Ô Luar, hoje é dia da sopa do cavalo cansado, com torradinha­s ao azeite”. Respondi com um leve e quase imperceptí­vel aceno, afirmativo, com a cabeça. Parece até que adivinhou.

Enquanto a questão do feijão verde voltava, finalmente, ao assunto, dei corda no velho e conservado gramofone. Presente de querido amigo Joel Cruz Credo, fotógrafo, que já não habita nosso mundo, infelizmen­te. Tem mais de 50 anos em minha estante. Vez por outra, em ocasiões especiais, deixo o bicho funcionar. E, neste dia chuvoso e complicado, lembrei dele. Com a corda no máximo, coloquei o disco de acetato, gravado com cantos Gregoriano­s, e deixei rolar. Os velhos amigos pararam de falar, se entreolhar­am e, parecendo passe de mágica, se e resolveram que era hora de sair de fininho.

Foi Fred que deu o aviso: “Vamos cair fora. O velho Luar quer trabalhar. Cantos Gregoriano­s eu não aguento”. Não perdi a oportunida­de em justificar: “Minha homenagem à falecida Rainha da Inglaterra. “A Rainha está morta. Viva o Rei!”. E, na saída dos vizinhos, quando passavam sob a nespereira, onde as maritacas se fartavam nos frutos, a maioria foi atingida pelo “bombardeio” das maritacas. Só me restou gritar, como consolo: “Dizem que dá sorte...”.

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ARQUIVO O DIA “Dei corda no velho e conservado gramofone”

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