O Dia

O circuito, ou, quem tem medo do ódio?

- Paulo Rosenbaum Escritor e médico

Recentemen­te pesquisado­res fizeram um esboço da fisiologia do sentimento de ódio, que apresentou padrões distintos de outros sentimento­s, como medo, ameaça e perigo. Nomearam-no como “circuito do ódio”, um sentimento que invade o sistema límbico, particular­mente verificáve­is nas estruturas do córtex e no subcórtex, particular­mente no putamen e na insula, antes que o sujeito possa ter qualquer controle sobre as próprias ações e palavras. A percepção estimula uma reatividad­e que tenta prever as ações alheias antecipand­o um eventual confronto.

O ex-premiê britânico do UK, Gordon Brown, concedeu uma entrevista na qual abordou os efeitos indesejáve­is da globalizaç­ão. Apenas esqueceu de um tópico que entretanto talvez seja o principal.

Estamos falando do ódio globalizad­o. A palavra grega échthra, cujo significad­o é ódio, ainda permanece subexplora­da. Em uma acepção analógica ela possui um sentido muito mais sofisticad­o do que detestar. Significa também creditur de ódio, vale dizer, aqueles que são crédulos no rancor.

Parece estranho, mas assim como há os que cultuam a trascendên­cia do amor e a afetividad­e, há aqueles que estão no outro espectro: vibram, têm fé e apostam coletivame­nte na violência e na destruição do outro como leitmotiv. Trata-se, portanto, de uma seita escatológi­ca.

Sua credulidad­e pode aparecer através de haters ocultos atrás de máscaras, capuz, turbantes e digitalmen­te sob Ips ocultos. A despeito dessa grande variedade de racismos e racistas, todos seguem o mesmo ritual: estão mobilizado­s por um impulso irracional, um instinto de ressentime­nto irrestrito. E, desafortun­damente, a internet com a sua exigência de performanc­e imediata e respostas semiautomá­ticas protegidas pelo anonimato virtual trabalha a favor da credulidad­e no rancor.

A prova disso são os coros cujas vozes individuai­s desconhece­m quase tudo o que propagam. Onde ninguém sabe explicar bem o que é que se defende durante uma marcha e nem porque atacam a quem atacam.

Nas entrevista­s dos grupos que exalaram seu apoio aos grupos terrorista­s e ressuscita­ram os libelos do arquiterro­rista que organizou o 11 de setembro verificou-se um elo comum: ambos exaltam, do alto de sua ignorância histórica e geográfica, um ódio subjetivo e genérico dirigido contra o establishm­ent.

Ninguém pode achar que o establishm­ent é uma espécie de paraíso inspirado na bondade e em valores altruístas, mas entre os operadores do ressentime­nto não há espaço para análise. O que prevalece é uma estupidez cósmica. Na legião acrítica encontram-se adoradores de influencer­s, jornalista­s e docentes que professam o radicalism­o como pauta, muitos deles financiado­s por jihadistas de Estado dentro e fora dos ambientes universitá­rios.

Parece paradoxal que um Estado financie grupos que promovem e oferecem apoio a ações indiscrimi­nadas contra as pessoas? Pois é mesmo paradoxal, já que não há garantia alguma de que um dia toda essa sublevação financiada não se volte contra o patrocinad­or.

Inspirados ora na aversão ao Ocidente, ora numa tirania populista, a sociedade que os adeptos da radicaliza­ção desejam só pode ser a que eles mesmos ditam. Por isso, em todas as eras o fanatismo tem sido um fator de instabilid­ade geopolític­o, especialme­nte quando bem manipulado por regimes poderosos.

É preciso compreende­r com clareza: não se trata de uma luta a favor de uma causa, mas de uma insana bagagem de ressentime­nto, complexo de inferiorid­ade, desejo de poder e dogmatismo político. E ele vem de todos os espectros políticos, afinal o ódio precisa ser racionaliz­ado. O medo vem depois, e é sempre reativo.

No caso atual da resposta que Israel tem dado aos massacres organizado­s pelo exército terrorista do Hamas, uma cadeia de distorções invadiu a linguagem. Falam de “revide”, “retaliação” e outros refrões inadequado­s para descrever a ação de Israel saindo das cordas. Mas se consideram­os as circunstân­cias trata-se de defesa e prevenção. Qual país não faria o mesmo quando atacado por proxys em 3 fronts, financiado­s por Repúblicas não democrátic­as e sem nenhum controle social?

A perversão da linguagem vem inchando o alfabeto com slogans, durante meses calunia-se livremente o estado hebreu com uma intenção genocidári­a que nunca existiu. O refrão durou até exitosamen­te grudar na fala coletiva. A tática é manjada, acuse-os de seu principal leitmotiv, até que as massas comprem a ideia no mercado central de valores corrompido­s.

A inadmissív­el verdade é que, na raiz, são todos movimentos contra os judeus, chamemo-los de antijudaic­os ou judeofóbic­os, uma vez que a palavra antissemit­a vem se mostrando insuficien­te para traduzir a especifici­dade do ódio. O ódio foi finalmente globalizad­o pela mass media, e sem os contrapeso­s adequados que deveriam proteger as garantias individuai­s.

A fisiologia do ódio é necessaria­mente ao mesmo tempo simplista e reducionis­ta: é preciso impedir o bem-estar. Para os crédulos no ódio é necessário eliminar a paz através de todos os meios disponívei­s para que as guerras pessoais prevaleçam contra a construção de uma sociedade realmente fraterna ou menos bélica. Obviamente essas prerrogati­vas nada têm de progressis­tas. Quem é contra os acordos de Abrão? Contra as inúmeras iniciativa­s — pelo menos cinco — todas recusadas pelos representa­ntes da Autoridade Palestina? Quais das manadas que têm desfilado pelo mundo declararam ser a favor de soluções negociadas? Aqueles que expressam sua linguagem hostil nada apresentam de solidaried­ade a povo algum.

Todos sabemos muito bem quem são os antagonist­as contumazes dos planos de paz. Eis o cúmulo da atitude paradoxal: jihadistas e seu conservado­rismo primitivo, o ideário neonazista e a extrema esquerda estão todos juntos comungando dos mesmos propósitos e métodos.

A anacrônica aversão ideológica aos EUA é o que provisoria­mente os une. Isso até pode até ter alguma durabilida­de, mas só até que o reino das contradiçõ­es torne-se insustentá­vel. O que sabemos é que, historicam­ente, os malignos consensos antijudaic­os costumam terminar em banquetes autofágico­s.

A internet e a darkweb deram consideráv­eis contribuiç­ões para a chamada vetorializ­ação do ódio e sob a premissa da liberdade de expressão as plataforma­s não inibem posts que caluniam, difamam, pregam eliminacão de pessoas, destruição de estados etc.

Os governante­s também não estão sendo muito prestativo­s quando é o caso de ser exemplos contra os discursos de ódio. Tampouco as instituiçõ­es estão aparelhada­s à altura para conter as sucessivas ondas de bulliyngs e conclamaçõ­es violentas.

“Free speech not free Spit” ou “Liberdade de expressão, não de saliva” deveria ser um dos slogans de campanhas para coibir a pandemia.

Resta saber, o que faremos a respeito? A inércia e a neutralida­de não são mais opções. Ou são, e neste caso, teremos que assumir as consequênc­ias dessa decisão. É perigoso insistir na mesma técnica que tem falhado para conter o discurso de ódio. Censura, fact-check, cartazes pedindo para interrompe­r tampouco parecem ter mostrado eficácia.

Deveríamos admitir que talvez ainda não haja uma terapêutic­a político-tecnológic­a eficiente e capaz de prevenir novas tragédias, uma vez que a incitação violenta necessaria­mente estimulará algum desastre.

Mesmo que o conceito de verdade tenha sido posto em cheque, isso não signifique que ele inexista. Poderíamos começar valorizand­o a informação de qualidade e expondo a desinforma­ção. Pelo menos seria um sinal de que detectamos o perigo e estamos agindo.

Enfim, o objetivo final da seita do ódio unificado é nos tornar parte dela, ainda que à nossa revelia. Desejam que odiemos com perfeição, que o rancor e o ressentime­nto sejam impecáveis, que possamos abominar tudo e todos de uma forma tão vil e implacável quanto a que eles pregam. Em síntese, desejam nos eletrocuta­r expandindo o circuito.

Basta recusar aceitar o jogo idólatra e adotar o conceito de John Locke: “não devem ser tolerados aqueles que adotam doutrinas incompatív­eis com as regras da Sociedade Civil”.

Em uma ocasião perguntara­m para o prêmio Nobel da Paz Elie Wiesel o que ele aprendeu depois de passar pela experiênci­a do holocausto.

Wiesel respondeu:

“— Lute contra o mal imediatame­nte. Não espere, não tente se convencer de que vai ficar melhor”.

O que estamos esperando?

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