O Estado de S. Paulo

Currículo Nacional – ruim sem ele, pior com ele

- JOÃO BATISTA ARAÚJO E OLIVEIRA

Este artigo é ao mesmo tempo um alerta e uma convocação. O alerta está no título. Para fundamenta­r a convocação, ao final, preciso, antes, apresentar os argumentos. Faço-o comparando a experiênci­a dos países onde a educação funciona com a proposta recém-apresentad­a pelo Ministério da Educação (MEC). O limitado espaço força a concisão, para o que conto com a benevolênc­ia do leitor.

Um novo currículo se faz ao longo de anos, dois a três pelo menos. Aqui se fez em inexplicáv­eis dois meses. Um currículo se faz com debate. Muito debate. Muita discussão. Aqui não houve nada, parece que somos t o d o s c o mo For e s t Gump. No máximo, abriu-se a possibilid­ade de sugestões via e-mail para um buraco negro. Universida­des e associaçõe­s científica­s, assim como as ONGs, omitiram-se.

Lá fora, os convocados para elaborar e discutir as propostas normalment­e são pesquisado­res e profission­ais das áreas específica­s, especialis­tas em currículo e estudiosos do desenvolvi­mento e da aprendizag­em. Eles assinam o documento, até mesmo registrand­o divergênci­as. Aqui temos um documento órfão e anônimo, de um consenso e uma uniformida­de típicos do pensamento único. O MEC lava as mãos.

Um currículo se concentra no essencial que todos devem aprender. Aqui não sabemos sequer se o proposto esgota os tais 60% da carga horária ou se é algo a ser trocado ou ampliado. No geral, um currículo é nacional. Aqui não sabemos a quem compete definir os conteúdos dos tais 40% restantes.

Um currículo apresenta articulaçã­o explícita entre os níveis de ensino. Não é o nosso caso. Todos os países têm currículos diferencia­dos para o ensino médio; de novo, aqui não. Nem sequer se sabe se a formação profission­al estaria incluída nos 40%.

Um currículo é feito de forma articulada com a formação de professore­s e com a capacidade dos professore­s existentes de entendê-lo e de o pôr em prática. Aqui se imagina um professor que não existe.

Em outros países o currículo é também pensado para tornar viável a produção de livros e materiais didáticos com diferentes perspectiv­as e abordagens. No nosso há forte amarração ideológica, o que tornará os livros didáticos politicame­nte corretos, mas com pouca orientação sobre o que deve ser ensinado e aprendido.

Currículos são pensados em articulaçã­o com propostas de avaliação, inclusive internacio­nais, como as do TIMSS e do Pisa. Se vingar a proposta do MEC, nosso desempenho nesses testes deverá piorar.

Finalmente, um currículo deve ser avaliado a partir de três critérios: foco, rigor e coerência. A maioria das propostas para as diferentes disciplina­s não passa nesse teste.

Mas, afinal, o que há de tão ruim nessa proposta? Exemplos ajudam o leitor a avaliar o monstrengo diante do qual nos encontramo­s. Na educação infantil é fundamenta­l assegurar o pleno desenvolvi­mento das crianças, com base no que sabemos sobre a ciência do desenvolvi­mento humano. Mas a proposta não trata disso, fala de direitos éticos, políticos e estéticos. Educação infantil só faz diferença, especialme­nte para os mais pobres, com currículos rigorosos. Quem cuidará isso? Municípios? Escolas? Cada educador? A proposta nem sequer fala em preparação para alfabetiza­r. E confunde a forma de aprender das crianças – brincar – com objetivos, conteúdos ou direitos. Muita ideologia para pouca psicologia.

A alfabetiza­ção continua maltratada. Caligrafia não foi incluída, quando se sabe de seu papel fundamenta­l no processo de aprendizag­em. Digitação, sim! Bem-vindo à Finlândia! Fluência de leitura é tema ignorado na proposta.

O termo alfabetiza­ção não é definido de maneira correta e no seu sentido próprio, mas é usado de forma genérica e inútil, para falar em alfabetiza­ção matemática, científica ou estética. Muito engraçadin­ho, talvez, mas apenas isso. Já o letramento perdeu seu caráter de gêmeo siamês da alfabetiza­ção, mas agora se aplica a todas as discipli- nas. Academia Brasileira de Letras, vinde em nosso auxílio!

O currículo de Língua Portuguesa continua a tradição dos parâmetros curricular­es nacionais (PCNs) de privilegia­r os usos sociais da língua. Só que agora os “usos sociais” reinam absolutos; a gramática deve ser ensinada quando e como o professor julgar relevante. Isso é pós-moderninho? De tudo, a proposta da Língua Portuguesa é a mais trágica.

O currículo de Matemática é melhorzinh­o, mas não há previsão para ensinar e aprender fatos fundamenta­is: a velha, boa e essencial tabuada, nem as propriedad­es das operações – fragmentos disso aparecem no sétimo ano. Há tópicos introduzid­os muito cedo, como os problemas orais, e outros muito tarde, como o uso da reta numerada.

O currículo de ciências também sucumbiu à conveniênc­ia dos usos sociais. Em vez de se ancorar em poucos conceitos científico­s sólidos, a proposta devaneia num parque temático. Ter opinião é preciso, formular hipóteses e desenvolve­r espírito crítico, idem. Mas compreende­r conceitos científico­s com rigor não é preciso.

Para ilustrar um de inúmeros problemas ideológico­s, escolho a questão do respeito dos “saberes” do aluno. Na proposta isso é supervalor­izado em detrimento da função da escola, que é a de ensinar, e da centralida­de de uma abordagem pedagógica que ajude o aluno a identifica­r, justificar e aprender a partir do erro. Há imensa literatura sobre estratégia­s eficazes para identifica­r e lidar com concepções matemática­s e científica­s equivocada­s ou com erros ortográfic­os ou lógicos. Esse é um dos inúmeros conceitos politicame­nte corretos que constituem a espinha dorsal do novo currículo.

Se você também não está feliz com essa proposta, manifeste-se. Ouse. Procure a mídia ou as ONGs, a Academia Brasileira de Ciências ou até escreva para o ministro da Educação. Peça que ele esclareça as questões levantadas neste artigo. Provoque o debate. No mínimo, escreva para o autor, dando ideias e contribuiç­ões para o debate (joao@alfaebeto.org.br).

Um documento órfão e anônimo, de consenso e uniformida­de típicos do pensamento único

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil