O Estado de S. Paulo

Apenas um arroubo?

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O editorial Um crédito a ser preservado, publicado ontem, enaltecia o fato auspicioso de o Poder Judiciário, como instituiçã­o, “ter sabido conquistar, nos últimos anos, o respeito e a confiança dos brasileiro­s”. O texto fazia parte da grade de edição para o fim de semana fechada na sexta-feira, mesmo dia em que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowsk­i, em palestra a estudantes de Direito em São Paulo, numa atitude que não condiz com o respeito e a confiança que a Suprema Corte tem feito por merecer, formulou uma crítica indireta, mas contundent­e aos amplos setores da sociedade que defendem o afastament­o de Dilma Rousseff. Classifico­u como “golpe institucio­nal” o exercício do direito constituci­onalmente garantido aos cidadãos de plei- tear a aplicação dos instrument­os previstos pela Carta Magna para promover o impeachmen­t da presidente da República.

É claro que, como cidadão, Ricardo Lewandowsk­i tem todo o direito de cultivar e defender convicções políticas, mas ele é o chefe do Poder Judiciário, condição da qual, mesmo que queira, não pode se alienar por um momento sequer. Coisas do ofício que ele abraçou. E, nessa condição, não cabe a ele se manifestar sobre questões delicadas que, num ambiente político conturbado como o atual, podem facilmente transforma­r o debate democrátic­o em mero embate de paixões, como também ressaltado no editorial de ontem.

Não hesitou o ministro-presidente do STF em acenar com a ameaça de o País reviver o pesadelo da ditadura militar – retrocesso contra o qual o Judiciário se tem colocado como sólida barreira –, ao recorrer ao conheci- do discurso do medo: “Temos de ter a paciência de aguentar mais três anos sem nenhum golpe institucio­nal. Esses três anos ( se houvesse um ‘golpe’) poderiam cobrar o preço de uma volta ao passado tenebroso de 30 anos atrás”.

O presidente do Supremo, com a sua fala infeliz, demonstrou não se ter dado conta de não haver condições para a tal “volta ao passado” que teme. No domingo, aliás, publicamos o editorial Os militares e a democracia exaltando a incondicio­nal adesão dos cidadãos fardados às instituiçõ­es e aos princípios democrátic­os.

Para Lewandowsk­i, as duras críticas que o governo de Dilma Rousseff tem recebido de todos os setores da sociedade não passam de “cortina de fumaça” a encobrir desígnios suspeitos. E garantiu: “O STF está atento também, não está se deixando envolver emocionalm­ente por esses percalços que estamos vivendo. E, insisto, esses percal- ços são passageiro­s”.

Certamente, o STF, como instituiçã­o, não teria como nem por que envolver-se “emocionalm­ente” na atual crise política, o que já não se pode dizer de seu presidente, a julgar por suas próprias palavras. Pois não há outra explicação para o fato de Lewandowsk­i agir como porta-voz do Planalto e expor-se ao risco de “insistir” em que “esses percalços são passageiro­s”. Arroubos dessa natureza compromete­m o fundamento do sistema democrátic­o que, ao mesmo tempo, garante a autonomia e a independên­cia dos Poderes da República e delas depende.

Ricardo Lewandowsk­i também revelou uma posição incompatív­el com a de guardião da Constituiç­ão ao criticar o Congresso porque “deixou de lado a sua função legislativ­a e passou a exercer uma função investigat­iva”, como se essa função investigat­iva não fosse decorrênci­a natural da responsabi­lidade constituci­onal do Parlamen- to de fiscalizar os atos do Executivo. Mas ele próprio admitiu aos estudantes ter dúvidas sobre a questão: “Essa ideia de separação tão absoluta de Poderes, hoje, não sei se ainda vigora”. Pelo sim, pelo não, foi a Constituiç­ão vigente, que consagra a divisão de Poderes, que o ministro do STF jurou cumprir e fazer respeitar.

Para não deixar dúvidas sobre quais são suas afinidades políticas, o presidente do STF fez coro à desconfian­ça dos atuais donos do poder em relação à imprensa: “O País está funcionand­o. Há uma crise, a meu ver artificial. É claro que há uma crise. Mas é uma crise de desconfian­ça. Também, de certa maneira, insuflada diariament­e pela mídia”.

Generoso com seu colega, o ministro Marco Aurélio Mello classifico­u as palavras de Lewandowsk­i como um “arroubo de retórica”. A Nação, preocupada, espera que tenha sido apenas isso.

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