O Estado de S. Paulo

Anatomia de um rumor

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Apresident­e Dilma Rousseff encerrou ontem, pelo menos por algum tempo, especulaçõ­es sobre a substituiç­ão do ministro da Fazenda de seu governo. Na Turquia, onde participav­a da reunião de cúpula do G-20, Dilma anunciou que Joaquim Levy fica, desarmando uma conversa já antiga, que tem ido e voltado em meses recentes e ganhara vida mais intensa nos últimos dez dias. Segundo o rumor que temporaria­mente voltou a hibernar, o ex-presidente Lula, depois de muita insistênci­a, finalmente teria conseguido emplacar Henrique Meirelles, o ex-presidente do Banco Central em seus dois manda- tos, na Fazenda.

Consideran­do que esse tipo de zunzum não costuma sobreviver sem a presença de algumas condições próprias que lhes deem sustentaçã­o, é o caso de averiguar porque esse enredo resiste a sair de cena. Fica claro, quando essa investigaç­ão é feita, que existem bases para alimentá-lo, apesar de a troca de Levy por Meirelles, especifica­mente, ter se mostrado sempre bem improvável. Razões de fundo – econômicas e políticas – se combinam com elementos comportame­ntais – estilos pessoais de relacionam­ento e perfis de personalid­ade – para favorecer a narrativa.

Levy, seja quais forem as circunstân­cias atenuantes, não está conseguind­o entregar o que estava previsto no seu “contrato”. Sua missão, ao assumir a Fazenda, era a de promover um ajuste fiscal que impedisse a progressão da relação dívida pública/PIB e evitasse a perda do “grau de investimen­to”. Não entregou esta última e não está conseguind­o evitar a outra, não tendo até agora encontrado o caminho para a retomada do cresciment­o. Não conseguiu, enfim, deixar a marca de esforçado secretário do Tesouro para vestir o uniforme de ministro da Fazenda.

É verdade que seu empenho tem esbarrado no ambiente contaminad­o pelo programa oposicioni­sta de levar Dilma ao impeachmen­t, o que resultou em boicote ativo no Congresso aos esforços que empreendeu para conter gastos e, antes disso, evitar aumentos de despesas com origem nas “pautasbomb­a” aprovadas. Além disso, sua estratégia de promover um ajuste rápido, sem medir, em alguns casos, os impactos sociais dos cortes enfrenta desgastes dentro do próprio governo.

São pontos que embutem outro aspecto capaz de colaborar na disseminaç­ão da ideia de que Levy está sempre com um pé fora do governo: faltaria a ele tanto o gosto pelo jogo político, quanto cintura e paciência para jogálo. A aprovação no Congresso, mesmo com alterações, do projeto de repatriaçã­o de recursos ilegalment­e transferid­os para o exterior e dos sinais de que, ainda que em menor proporção em relação ao pretendido pelo governo, possa ser aprovado o projeto de renovação da desvincula­ção de receitas da União (DRU), dá sobrevida a Levy, mas sua taxa de validade continua limitada. Em resumo, ele fica e os rumores de sua saída também.

Resta, ao elaborar a anatomia do rumor, entender as providênci­as que caberiam ao substituto adotar. Na parte substantiv­a dele, consta a percepção de Lula de que seria preciso substituir Levy para abrir uma agenda de cresciment­o que começa com o estímulo à demanda via crédito. Trata-se, aparenteme­nte, de uma tentativa de reproduzir agora, na segunda metade da década de 2010, aquilo que deu certo na década de 2000. Algo difícil de compreende­r porque as condições mudaram muito. Com desemprego, inflação e inadimplên­cia em alta, não é o crédito que está em falta, mas a demanda para ele.

Parece muito claro que, além de tentar reunir condições políticas para corrigir distorções fiscais estruturai­s, os esforços de retomada do cresciment­o passam por um mínimo reequilíbr­io das contas públicas no curto prazo e a construção urgente de um arcabouço básico para dar segurança e estimular os investimen­tos em infraestru­tura. Estes são os únicos para os quais a demanda, no momento, não é problema.

Levy fica, mas dados os elementos em jogo, a conversa de sua saída só deve hibernar

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