O Estado de S. Paulo

Uma história sem fim

Primeiro foram os Estados Unidos, depois a Europa. Agora, a crise do endividame­nto chega aos mercados emergentes

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Faz quase dez anos que a bolha do mercado imobiliári­o estourou nos Estados Unidos. E há seis, a insolvênci­a da Grécia pôs o euro em crise. Interligan­do esses dois episódios, havia uma expansão acelerada do endividame­nto, a que se seguiu um acentuado declínio na atividade econômica. Agora o mundo assiste ao desenrolar da terceira parte de suas “crônicas do endividame­nto”. O cenário, desta vez, são os mercados emergentes. Embora os investidor­es já tenham se desfeito de ativos nesses países, o impacto mais forte da desacelera­ção está por vir.

Crises de endividame­nto em nações mais pobres não são um fenômeno novo. E a atual provavelme­nte será acompanhad­a de situações em certa medida menos dramáticas do que as moratórias e o esboroamen­to das taxas de câmbio fixas que caracteriz­aram as debacles das décadas de 80 e 90. A maioria dos mercados emergentes atualmente tem câmbios mais flexíveis, reservas internacio­nais mais robustas e uma fatia menor de suas dívidas em moeda estrangeir­a. Não obstante isso, o impacto sobre o cresciment­o será maior do que as pessoas imaginam, abalando a economia mundial no exato instante em que o Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) parece ter finalmente decidido elevar suas taxas de juros.

Em todos os três volumes dessa trilogia do endividame­nto, o ciclo começou com grande volume de capitais cruzando fronteiras, reduzindo os juros e estimuland­o a expansão do crédito. Nos EUA, um excedente de poupança global, grande parte dele provenient­e da Ásia, inundou o mercado de crédito imobiliári­o de alto risco (subprime), com resultados desastroso­s. Na área do euro, a frugalidad­e dos alemães ajudou a financiar o boom do mercado imobiliári­o na Irlanda e o descontrol­e dos gastos públicos na Grécia.

Quando, no mundo desenvolvi­do, as bolhas deram lugar à crise, fazendo com que as taxas de juros caíssem a níveis historicam­ente baixos, mudou o sentido dos fluxos de capital. O dinheiro começou a fluir dos países ricos para os mais pobres. Pelo menos era a direção correta. Mas o que se seguiu foi apenas mais um período de farra e gastança: gente demais contraiu dívidas demais, e muitos dos recursos tomados pelas empresas foram aplicados no financiame­nto de projetos imprudente­s ou na aquisição de ativos supervalor­izados. O endividame­nto, que em 2009 chegava a 150% do PIB global das economias emergentes, agora é de 195%. A elevação foi particular­mente acentuada no setor privado, cujas dívidas representa­vam 50% do PIB desses países em 2008, e agora representa­m 75%. Na China, a relação dívida/PIB aumentou quase 50 pontos porcentuai­s nos últimos quatro anos.

Também essa bonança chegou ao seu epílogo. A desacelera­ção da economia chinesa e a baixa nos preços das commoditie­s tornaram sombrias as perspectiv­as dos mercados emergentes num momento em que, para piorar as coisas, o fluxo de capital barato foi estancado pelo fortalecim­ento do dólar e pela iminência da elevação dos juros americanos. Agora é hora do castigo. Alguns ciclos de endividame­nto terminam em crise e recessão – como mostram a derrocada do subprime nos EUA e as agonias da zona do euro. Outros resultam apenas em cresciment­o menor, com os tomadores parando de gastar e os credores saindo em busca de proteção.

A escala assumida pela expansão do crédito nos mercados emergentes garante que a colisão será forte. Em países em que a dívida do setor privado registra aumento superior a 20% do PIB, o cresciment­o da economia sofre desacelera­ção de quase três pontos porcentuai­s, em média, nos três anos posteriore­s ao auge do endividame­nto. Mas a extensão exata do impacto depende também de fatores locais, que vão da amplitude do ajuste cambial já ocorrido ao tamanho das reservas. Categorias. Grosso modo, as economias emergentes podem ser reunidas em três categorias. A primeira inclui os países em que o boom do crédito será sucedido por uma ressaca, mas não uma parada cardíaca. Coreia do Sul, Cingapura e assemelhad­os estão nesse grupo; assim como, com enorme importânci­a para a economia mundial, a China, que dispõe de fortes instrument­os para se proteger de uma fuga de capitais. Seu superávit em conta corrente é enorme. Suas reservas em moeda estrangeir­a chegavam a US$ 3,5 trilhões em outubro, montante que correspond­e a aproximada­mente o triplo do valor da dívida externa. Seus políticos estão em condições de socorrer tomadores em dificuldad­es e não dão sinais de que tolerarão eventuais calotes.

Acontece que varrer os problemas para debaixo do tapete não faz com que eles desapareça­m. As empresas que deveriam quebrar continuarã­o em pé, mas capengando; os empréstimo­s duvidosos se acumularão nos balanços dos bancos; o excesso de capacidade instalada em segmentos como o siderúrgic­o desaguará em outras paragens. Tudo isso deve prejudicar o cresciment­o, mas também adiará o risco de uma crise mais grave.

E é justamente a crises graves que estão sujeitos os países da segunda categoria – aos quais faltam os recursos que lhes permitiria­m socorrer tomadores imprudente­s ou proteger-se de uma fuga de capitais. Das maiores economias incluídas nesse grupo, destacam-se três. No Brasil, o tamanho do mercado de títulos corporativ­os aumentou 12 vezes desde 2007. O déficit em conta corrente indica que o país depende do capital estrangeir­o; e a paralisia política e a inflexibil­idade fiscal não contribuem em nada para acalmar os investidor­es. Na Malásia, os bancos acumulam obrigações em moeda estrangeir­a, e não há outro mercado emergente em que a relação entre dívida e renda das pessoas físicas seja tão alta. O colchão oferecido pelas reservas internacio­nais parece fino demais, e os analistas projetam redução do superávit em conta corrente. Já a Turquia combina déficit em conta corrente com inflação alta e dívidas em moeda estrangeir­a, que cresceram com a desvaloriz­ação da lira.

O terceiro grupo é formado pelos países que não enfrentarã­o problemas mais sérios ou já passaram pelo pior. Entre as principais economias emergentes, a Índia é a que se encontra em melhor forma e a Rússia pode superar as expectativ­as. O ajuste do rublo foi maior do que o de todas as outras moedas importante­s, e a economia russa começa a esboçar uma reação. A Argentina, que vive flertando com o desastre, mas cujo endividame­nto privado é pequeno, também tem chances de brilhar, se o reformista Maurício Macri for eleito presidente.

Com exceção desses oásis, tudo indica que a economia mundial terá mais um ano desanimado­r pela frente. O FMI projeta um cresciment­o mais robusto para os mercados emergentes em 2016, mas, se a experiênci­a dos ciclos de endividame­nto anteriores serve de indicação, o mais provável é que eles continuem andando de lado. E as agruras dos países em desenvolvi­mento, que agora respondem por mais da metade da economia mundial (em termos de paridade de poder de compra), têm consequênc­ias muito mais amplas que no passado. A desacelera­ção dessas economias afeta, por exemplo, os lucros das multinacio­nais e o fluxo de caixa dos exportador­es.

Por ser mais aberta, a economia europeia está mais exposta à queda na demanda dos mercados emergentes, e é por isso que o Banco Central Europeu deve ampliar o afrouxamen­to monetário. Para as autoridade­s americanas, o dilema é mais agudo. A assimetria entre a política monetária praticada nos EUA e a adotada no resto do mundo fará o dólar se valorizar, prejudican­do as exportaçõe­s e os lucros dos grupos americanos. Novas ondas de capital podem mais uma vez escolher o consumidor americano como seu tomador preferido. Se isso acontecer, a crise mundial de endividame­nto pode acabar retornando ao ponto onde tudo começou.

Tudo indica que a economia mundial terá mais um ano desanimado­r pela frente

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