O Estado de S. Paulo

Nas pegadas do pai

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Perdi a conta das vezes que levei minha fome ao Farta Brutos, mas não me lembro de ter saído de lá sem que tivesse recebido do Francisco Oliveira uma fartura de agrados não exclusivam­ente culinários e etílicos. Já contei que conheci esse delicioso restaurant­e em 1998, por sugestão de José Saramago, em seguida a uma entrevista que com ele fiz, na ilha de Lanzarote, três meses antes do Nobel. Consultado sobre redutos da gastronomi­a lisboeta, o autor de Todos os Nomes destacou dois – Varina da Madragoa, onde festejara seu casamento com Pilar del Río, e Farta Brutos, no qual tinha mesa cativa.

Uma das atenções do Oliveira para comigo, justamente, em mais de uma ocasião, foi destinar-me “a mesa do Saramago”, na esperança, dirá você, de que eflúvios estilístic­os ali deixados viessem encorpar minha prosa chinfrim. Na última vez, faz uns dias, a relíquia estava ocu- pada, e o Oliveira, quem sabe para ressarcir-me de eventual decepção, excedeu-se em gentilezas. Não se limitou, ao final, a ancorar-me no melhor porto de sua adega: puxando cadeira, debulhou detalhes de uma história que, anos atrás, muito me impression­ara – a de sua peleja de décadas para reencontra­r o pai que, menino, ele viu partir de casa para nunca mais.

Hoje quase setentão, o Oliveira tinha 5 anos, e desde aquele dia traz tatuada na memória a cena em que António Esteves d’Oliveira se despede do filho e da mulher, Maria da Luz, para ir tentar situação melhor no Rio de Janeiro. Guapo e elegante, lenço na lapela, envolto num halo de perfume Tabou, António até então trabalhava na Casa do Povo, instituiçã­o da ditadura Salazar, onde lhe cabia ler para analfabeto­s as cartas que eles recebiam. Com a morte da mãe, recebeu pequena herança – e foi aí que decidiu embicar caravela rumo ao Brasil. O que então não se sabia, no lar dos Oliveira, é que deixava em Portugal também uma filha, Fátima, chegada ao mundo quase ao mesmo tempo que o Francisco.

A correspond­ência de António foi aos poucos rareando. Ao cabo de largo silêncio, um dia sondou as duas mulheres para saber como seria recebido se voltasse. A mãe de Fátima nem se deu ao trabalho de responder. Maria da Luz, que hoje tem 90 anos, não deixou por menos: “Quem comeu a carne que roa os ossos”.

Nunca mais António deu notícia. Sabe-se que seguiu pendurado no primeiro emprego, no boteco de uns compatriot­as no subúrbio carioca de Rocha Miranda, e que, de mais de um ventre, teve dez filhos. Morava por ali, mas o endereço que dava, enquan- to escreveu, rua dos Diamantes, 917, era o do botequim. Foi para lá que o Oliveira enviou sua última carta, postada em Moçambique, onde, aos 22 anos, integrava as tropas portuguesa­s em luta para não perder suas colônias. Não houve resposta.

Nem por isso o filho desistiu. Nos anos 1990, numa das mesas do Farta Brutos, contou a história ao embaixador do Brasil, José Aparecido de Oliveira. O diplomata lhe pediu uma foto do pai, e Francisco mostrou uma que recebera dele em 1964. Foi graças a um carimbo nesta foto, feita num estúdio em Rocha Miranda, que burocratas acionados pelo embaixador puderam localizar António. Em seguida, veio ajuda de outro habitué da casa, o comandante Gomes Mota, alta figura da TAP, que ofereceu passagem a baixo custo e hospedagem grátis no hotel carioca onde pousava a tripulação da companhia.

E lá se foi o Oliveira rumo a Rocha Miranda, com o cuidado de se fazer acompanhar de dois guarda-costas, e a esperteza de, mal chegado ao botequim da rua dos Diamantes, pedir 10 caixas de cerveja para fartar os brutos que ali estavam. Foi ele dizer o nome do pai e saltarem pistas: “Sou o sapateiro dele!”. “E eu o barbeiro!”. Pouco depois, devidament­e encervejad­os, tocavam todos para a casinha onde vivia António. À frente do carro do Oliveira, corria uma excitada patuleia, “todos descalços”, lembra-se ele, “e nenhum branco”.

Num quartinho de fundos, o filho reencontro­u o pai. Magro, cabelos compridos, camiseta regata, calção e chinelo de dedo, o velho levantou-se da rede onde fazia a sesta – mas, fora do ar fazia tempo, não reconheceu o homem que em prantos o beijava e repetia “sou eu!”. Aturdido, o filho não se lembrou de usar sua Kodak. Apressado pelos guarda-costas, não se demorou ali, nem se sentiu tentado a ir atrás de seus irmãos ultramarin­os. Não voltaria a ver o pai, que irá morrer já próximo dos 90 anos. Durante um tempo, mandou-lhe dinheiro vivo dentro de envelopes, aos cuidados dos donos do boteco.

Ao deixar o quartinho, Francisco Oliveira reconheceu num canto a mala que o pai levava quando cruzou a porta da casa pela última vez.

Tinha 5 anos quando o pai se foi. Reencontrá-lo seria uma obsessão em sua vida

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