O Estado de S. Paulo

Ora, sejamos marxistas

- EUGÊNIO BUCCI

Na semana passada, 105 advogados, vários deles com clientes indiciados na Operação Lava Jato, divulgaram um manifesto contra o juiz Sergio Moro. Em sua “carta aberta em repúdio ao regime de superação episódica de direitos e garantias verificado na Operação Lava Jato”, acusaram promotores, policiais, juízes e “a mídia” de “menoscabo à presunção de inocência”. Despertara­m a ironia de articulist­as, o repúdio de integrante­s do Ministério Público, o desprezo silencioso de outros advogados e o aplauso público ou discreto de dirigentes do PT.

Uma vez mais ficou explícita a unidade disciplina­da entre o discurso dos causídicos que defendem os interesses dos empreiteir­os tornados réus e o discurso dos petistas de alta patente, que, quando defendem o governo (pois de vez em quando o atacam), alegam tratar-se de um governo de esquerda. As diferenças ideológica­s que havia entre os dois discursos – o do PT e o das empreiteir­as – desaparece­ram como enxurrada engolida pela boca de lobo. As megaconstr­utoras de ultradirei­ta, viciadas em dinheiro público, e o partido nascido à esquerda, das greves do ABC, já foram antípodas. Agora cantam em dueto. São duas mãos que se lavam em águas enlameadas.

Descartada por absurda a hipótese de que as empreiteir­as se tenham convertido ao socialismo utópico, façamos a pergunta inevitável: esse partido é mesmo de esquerda? Será de esquerda o dueto entre o PT que não gostava do capital e o capital que não gosta de concorrênc­ia? Será uma “aliança tática”? Será que, no imaginário da nomenklatu­ra, a perfeita simbiose se justifica para combater “inimigos de classe” mais “reacionári­os” e mais fatais, como repórteres mal remunerado­s, delegados de polícia e magistrado­s de primeira instância? Será que, comparados ao reportaria­do, os empreiteir­os são assim tão “progressis­tas”? Serão eles os mais fiéis “companheir­os de viagem” na marcha rumo ao fim da exploração do homem pelo homem?

Falemos sério. O mais provável não é nada disso. O mais provável é o mais horrível. Já não é o lobby das construtor­as que se apressa a socorrer o caixa eleitoral dos companheir­os, mas a máquina dos ex-sindicalis­tas que adere a um modo de produção parasitári­o (um híbrido promíscuo entre a acumulação primitiva e o capitalism­o de Estado), ao qual dá sustentaçã­o reverencia­l, como quem ampara a galinha dos ovos de ouro (ou como quem venera um totem).

Aquilo que a olhos otimistas não passa de desvios infelizes a manchar a trajetória de uma organizaçã­o partidária combativa talvez não seja apenas isso, quer dizer, talvez não seja meramente uma sucessão de incidentes desabonado­res, mas a manifestaç­ão de um caráter histórico que até outro dia se ocultara. Aquilo a que damos o nome genérico de corrupção não seria, enfim, um deslize criminal episódico, mas uma determinan­te estrutural; não seria uma traição da política, mas a mais acabada expressão da política de colaboraçã­o de classe entre uma legenda de retórica trabalhist­a e uma burguesia inculta e retrógrada. Não, não estamos falando de uma colaboraçã­o de classe qualquer, mas de um pacto sem lei no qual a rapinagem do erário, em lugar de evento excepciona­l, é o método.

Em resumo: o que tem o as- pecto de desvio não é bem um desvio, um ato que escapou do campo da ação política, mas a realização material da política, a política em sua matéria mais irredutíve­l.

Se for verdadeira essa hipótese, os sinais do discurso petista estão todos invertidos. O encadeamen­to dos governos que aí estão há 13 anos, que esse discurso insiste ser de esquerda, seria o oposto. Não terá sido para tornar viável uma agenda de inclusão social que alguns se deixaram aliciar pelo capital selvagem. O que parece ter acontecido é o contrário: foi para tornar viável um modelo de poder que passava pela subtração prolongada – deslocando o centro do Estado para uma órbita estranha ao interesse pú- blico – que se fez necessário acenar com benefícios aos eleitores pobres. Os tais programas de distribuiç­ão de renda e de combate à pobreza não teriam sido uma política pública inclusiva, mas uma concessão equivalent­e ao custo de manutenção do modelo.

Não que políticas públicas de combate à pobreza constituam um vício em si mesmas. Elas são justas e dramaticam­ente necessária­s no Brasil. O que fez delas uma manobra oportunist­a, ineficaz e infértil não foi o seu conteúdo, mas o caráter do modelo de poder que as acionou. Elas não traduziram uma estratégia de resgate dos pobres, mas de instrument­alização deles.

É triste. O PT não é Itabira ou Orlândia, mas se reduz aos poucos a uma fotografia na parede. Como dói. A verdade que se vai decantando na imagem machuca os olhos. Haverá futuro? Não é provável, a menos que as vozes vivas que ainda resistem nas cercanias do partido enunciem respostas públicas, destemidas, objetivas e materiais sobre sua tragédia ética e sua farsa.

Em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx lembra que a primeira revolução (burguesa) de Napoleão libertou os camponeses da semisservi­dão e os transformo­u em pequenos proprietár­ios de terra. Não por solidaried­ade, mas porque o poder por trás das guerras napoleônic­as dependia de varrer o feudalismo (a servidão) para patrocinar o capitalism­o. Poucos anos depois do que parecia ter sido uma conquista, os tais pequenos proprietár­ios se deram mal. Marx anota: “A forma ‘napoleônic­a’ de propriedad­e, que no princípio do século 19 constituía a condição para libertação e enriquecim­ento do camponês francês, desenvolve­u-se no decorrer desse século na lei da sua escravizaç­ão e pauperizaç­ão”.

A estrela do PT chegou a reluzir como a via de promoção dos desassisti­dos, mas não os libertou da pobreza. O projeto de classe parece que foi outro. Os empreiteir­os, que não são marxistas, sabem muito bem por quê.

As megaconstr­utoras de ultradirei­ta e o partido nascido à esquerda agora cantam em dueto

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